A FRUIÇÃO DO OLHAR na obra de Walter Miranda
Venho analisando atentamente as obras do artista plástico Walter L. L. Miranda no decorrer de sua dinâmica carreira. Nela além da constante temática social e humanista, vê-se uma evolução crescente, onde o trabalho atual já estava latente nas obras mais antigas.
Walter inicia a carreira como ilustrador habilidoso em 1976, com grande domínio de desenho e de diversas técnicas (guache, nanquim, grafite). Essas ilustrações eram reproduções de imagens realistas e hiper-realistas de cenas de filmes ou criadas por ele encomendadas por editoras. Nessa época, já aparece algumas sobreposições de cenas e texto nos trabalhos.
Em 1977 estréia como artista plástico através da obra intitulada A Esperança é a Última que Morre, onde aparecem alguns elementos importantes para essa análise e comparação com as obras futuras. O óleo sobre tela tem ao fundo a noite com poucas estrelas, e uma estrela no alto se destaca. No segundo plano, no alto à direita há uma grande boca que grita. No primeiro plano há um rapaz cabisbaixo de costas para o espectador. Todas essas referências serão fartamente desenvolvidas nos anos subseqüentes. A noite estrelada, com o passar dos anos, se transformará em espaço sideral amplo, claro e diversificado com estrelas, galáxias e nebulosas. É como se a esperança fosse se tornando cada vez maior e com infinitas possibilidades. O grito, tanto é de angústia como de raiva, já que possui tantos dentes à mostra. Esse clamor e ira serão retomados constantemente a cada nova série, não tão explícito como nesse quadro mas de diversas formas metafóricas, diretas, indiretas, comparativas e com outros simbolismos. O rapaz cabisbaixo de costas é o artista autorretratado, na época com 23 anos. Vê-se um rapaz desencantado e envergonhado que não mostra de frente a sua dor, mas esperançoso caminha para seus sonhos estrelados. O grito representa o desabafo do artista e a repressão sofrida no início da carreira por ter feito essa opção profissional. Essa mesma visão esperançosa de um futuro melhor, aparece no quadro Janela de Quarto, seu próprio quarto escuro com vista luminosa para a rua e o horizonte de Itaquera onde o artista cresceu. Ainda neste ano, o artista começa usar colagens sobrepondo imagens e idéias correlacionadas e contrapostas. Isso será uma característica marcante de seus trabalhos mais a frente.
Nessa mesma época Walter começa a participar do movimento estudantil contra o regime ditatorial do país, vigente desde de 1964, e representa sua vivência em uma série de trabalhos que mostram jovens apanhando de soldados ou sendo socorridos por colegas, bombas de gás lacrimogêneo, etc. Esse é apenas o começo do seu grito de liberdade, Walter continuará tratando os temas de repressão, falta de liberdade, maus tratos, violência, cada vez com mais profundidade.
Em 1978 e 1979, as telas com temática social se intensificam retratando com nobreza pessoas pobres, porém com dignidade, em seus ambientes simples de moradia e trabalho.
Em 1980, nasce sua filha e os quadros com crianças se multiplicam. Em 1981, os contrapontos da série Transposição Social, mostram crianças pobres em ambientes ricos e vice-versa. O curioso dessa série, é que Walter não conhecia o ambiente do rico e teve que buscar informações para poder representá-lo. A pesquisa também será uma forte característica nas suas séries futuras. Com a série Transposições Sociais ele fez sua primeira exposição individual.
Nas Transposições Sociais surgem seu estilo de pintura "espirrada" e os primeiros trabalhos com silhuetas sobre papelão que ele mesmo produz. Aparece também pela primeira vez o principal elemento de suas obras futuras, a vedete de seu repertório, a Terra. Já podemos vislumbrar o caminho que as temáticas de Walter tomarão. Sem contar que em outro quadro, já aparecem painéis eletrônicos, mapa-múndi, lançamento de foguete, todos recorrentes no seu repertório pictórico.
Em 1982, Walter extrapola as questões políticas nacionais e documenta artisticamente a Guerra das Malvinas e é premiado no V Salão Jovem de Santo André com os quadros: Xeque Argentino, Xeque Inglês e Xeque-Mate. Nessa pequena série, os quadros são tabuleiros de xadrez cujas partidas disputam a posse das ilhas Malvinas. As peças desse xadrez consistem em cascas de limão semi-esféricas, pintadas nas cores das bandeiras britânica e Argentina, representando os capacetes dos soldados. Em cada quadro ocorre uma etapa da guerra. Nos 2 primeiros quadros, a ilha em disputa está partida ao meio com o tabuleiro no centro. Neles a disposição estratégica dos capacetes argentinos e ingleses varia de acordo com o momento bélico. No último quadro ocorre o xeque-mate com a ilha unida no centro do tabuleiro e com outras peças desse xadrez dispostas ao redor da ilha. Essas peças são vidros com tinta vermelha, representando contêineres com sangue dos mortos na guerra, sem distinção de país. Uma última peça, no centro do tabuleiro-ilha , é um desses contêineres vazio e aberto, como a se perguntar: haverá mais derramamento de sangue para enchê-lo?
Esta série foi muito bem sucedida quanto a linguagem para representação dos jogos de Guerra das Malvinas, tanto por ser sucinta e clara, como por ser lúdica e irônica. É autoexplicativa e provoca o espectador. Esses quadros influenciam as séries futuras pois iniciam os debates políticos e filosóficos mundiais e a inserção de objetos, no qual o quadro passa a ser tridimensional.
1983 foi um ano prolífico. Walter é premiado no 11° Salão de Arte Contemporânea de Santo André, com seu quadros sobre a copa de futebol de 82 na Espanha. Interessante notar que o artista passa a fazer experimentação técnica utilizando serragem sobre papelão de fabricação própria. Os quadros mostram cenas de jogos decisivos da copa onde os personagens possuem rostos facetados, como se fossem talhados em madeira e inacabados, o que torna-os impessoais e pouco expressivos. No fundo do campo de futebol, vê-se placas e letreiros como propagandas, contudo são críticas: inflação, violência, mordomias, injustiça, fome, etc.
Também em 1983, Walter inicia, nos quadros Todo Ismo É Ópio do Povo, o trabalho de alto e baixo-relevo e a composição geométrica, onde cada parte se relaciona com as demais, que por si só são independentes. O retângulo superior dos quadros com múltiplas imagens, símbolos, cenas, textos relacionados com o retângulo inferior que contém uma bandeira estilizada e uma palavra. No quadro do Brasil, a palavra é liberdade, no da União Soviética, Solidarnosc (Solidariedade da Polônia) e no dos Estados Unidos, o salvador (el Salvador, o país). Todos temas e discussões de seu tempo.
Ainda em 1983, a série 1984, o Estigma de George Orwell, é premiada no Salão de São Bernardo do Campo. Nessa série, Walter critica a política econômica brasileira, ao estilizar as figuras humanas (que ficam parecidas com robôs). Os quadros têm o enquadramento fechado, sufocante, com perspectiva curta e sem horizonte, multidões amontoadas circulam nas ruas e calçadões de São Paulo. Ao fundo os letreiros das fachadas das lojas com palavras de ordem: arrocho, soberania, democracia, pacotes, greve, moratória, fraude. O povo alienado sem perspectiva, massificado, enjaulado continua levando sua vida tranqüilamente controlados pelo Grande Irmão. Esta série marca o início de sua discussão sobre a massificação humana. Com o passar dos anos as figuras humanas de autômatos, que aparentam ser inanimados, transformam-se em silhuetas, como se fossem sombras, ou uma recordação indefinida das pessoas reais.
No ano seguinte, 1984, Walter escreveu um Manifesto em prol da campanha popular Diretas Já em um grande painel, que foi exposto na abertura do 12° Salão de Arte Contemporânea de Santo André. O painel era um convite ao público do salão para se manifestar em relação à campanha pelas eleições diretas. Ele foi preenchido vorazmente logo no primeiro dia da exposição, sendo necessário colocar faixas adicionais pelo salão para mais manifestações.
O projeto Beethoven, de 1985, foi uma proposta de Walter a mais 2 artistas para representarem plasticamente as sinfonias do mestre da música clássica. Nas obras da série, podem ser vistas as experiências do artista plástico com fusões de vários estilos de representação pictórica junto com o trabalho de pintura abstrata e pesquisa de cores. Da década de 80 essa é sua série mais colorida, cada quadro tem um matiz dominante mas é rico em diversidade de cores. A composição em faixas deixa de ser apenas horizontal e passa ser também diagonal. Vê-se cada vez mais textos dentro de suas obras, sinal que antecipa o lado escritor do artista plástico, que escreve matérias para suas exposições e eventualmente para jornais e revistas, além de apostilas didáticas sobre temas artísticos. Cada vez mais os temas de caráter universal tomam lugar em suas obras, como a massificação do povo, a fome, a injustiça, etc. Nessa série, os elementos de sua coleção de referência estão quase todos presentes: a Terra, a poluição, a violência, a Estátua da Liberdade, o cogumelo atômico, as armas de destruição em massa, as guerras, a questão da palestina, a criança, a pobreza, a fome, o trabalhador. Seu repertório artístico fica mais rico.
O quadro: Ser e não ter ..., de 1986, remete ao quadro de 1977, A Esperança é a Última que Morre, desta vez sobre a noite estrelada (já com mais estrelas), um menino famélico abraça o joelho desconsolado sentado sobre o planeta, quase aos seus pés há o globo divido politicamente em países. A dor do quadro da década anterior ainda está presente na forma de um menino com fome.
Também 1986, inicia a longa série Admirável Mundo Novo, onde os temas sociais e ideológicos juntam-se à questão da ecologia global. Com o trabalho mais abstrato, e a composição construtivista, mas sem perder o figurativo, trabalha os temas de uma maneira mais subjetiva, permitindo que o espectador chegue a conclusões próprias. Nesta fase surge também o uso de peças de computador e, profundamente influenciado por seus estudos sobre matemática e física, usa a relação áurea como ferramenta básica de suas composições. Agora sim, seu repertório está praticamente completo, com o homem de Vitrúvio de Leonardo da Vinci, o planeta Terra, inserção de componentes eletrônicos, mecânicos e da natureza em seus trabalhos.
Em 1989, começa a utilizar animais encontrados mortos. Em 1991 inova ao usar chapa de ferro perfurada como suporte. Percebe-se uma constante procura por suportes heterodoxos que variam desde a própria fabricação de papelão, até o uso de chapas de ferro ou de placas de computador. Nos seus trabalhos de 1992, propõe, de maneira sutil, porém enfática, a busca do equilíbrio humano no uso da tecnologia, através da representação de bailarinos.
O trabalho sobre o chefe indígena Seattle, Projeto Seattle - Exaltação a Gaia de 1996, é uma síntese bem clara de uma carreira artística e de uma busca constante pela justiça, pela coerência de atitudes. É uma visão que nos mostra humildade perante a mãe Terra - Gaia, presente em todos os quadros da série. O homem é questionado sobre a incoerência de seu desenvolvimento desestruturado que criou sua desintegração com a natureza. Sempre trabalhado de maneira clara e limpa, meticulosamente composto e rico em detalhes, o tema é desenvolvido em cada quadro através do fracionamento racional de retângulos com sub-temas. O uso da espiral logarítmica une os sub-temas com sua linha orgânica contrapondo-se à rigidez matemática dos retângulos áureos. Inovando, como sempre, e atualizado com seu tempo, Walter começa a inserir em seus trabalhos imagens digitalizadas, criadas e trabalhadas com grande domínio da computação gráfica. Nestes trabalhos inicia o uso mais intenso de cores e a pesquisa de texturas, dando mais vitalidade ao tema, que trata da ecologia mundial, sem nunca perder a oportunidade de questionar a atitude humana frente aos problemas sociais, ideológicos e tecnológicos, como também de buscar soluções para o retorno ao equilíbrio global.
Em 1998, na série Admirável Nova Idade Média, explora as analogias atemporais do mundo às portas do século XXI, com a Idade Média. Contrapõe de maneira irônica e dramática o mundo altamente tecnológico que ainda não conseguiu se desvencilhar da qualidade de (sub)vida da Idade Média. Walter, ao mostrar as similaridades do nosso tempo com o passado, faz crítica social, econômica, ecológica, tecnológica e sobretudo filosófica. A série Admirável Nova Idade Média é um bom exercício de reflexão contemporânea sobre a qualidade (virtual, talvez) da vida moderna. Esses questionamentos surgem nos quadros através da abordagem de situações opostas mostrando imagens novas e antigas sobre os diferentes assuntos em que as duas eras se assemelham. O artista prossegue seu debate sobre as questões humanas e sociais; e continua também sua pesquisa pictórica de composição, cor, textura, inserção de objetos e imagens digitalizadas. O contraponto também ocorre em suas obras quando usa a tradicional técnica da pintura a óleo aliada às técnicas contemporâneas de interferências tridimensionais e de imagens trabalhadas no computador. O artista plástico e o artista eletrônico coexistem no mesmo plano, que simultaneamente é bi e tridimensional.
Já na série Admirável Novo Milênio de 1999, continua abordando questões filosóficas, científicas, ambientais, religiosas, místicas, etc., referentes à situação humana neste início de terceiro milênio, através da utilização de pintura a óleo e da virtual computação gráfica, sempre aliadas à incorporação de objetos representativos do momento tecnológico atual (placas de computador, disquetes), elementos naturais (folhas e sementes de plantas) e objetos do cotidiano (jóias, selos, etc.). Nessa série, Walter dá mais um salto inovador em seu desenvolvimento artístico ao utilizar apenas recursos da computação gráfica para criar alguns quadros inteiramente virtuais que efetivamente só existem na forma digital (mesmo sendo possível sua impressão), levantando a questão para o observador sobre o que é virtual e o que é real. A polêmica dessa vez é sobre o quanto somos iludidos pelos sentidos, já que a sutil diferença entre o real e o virtual começa a se fundir em várias outras situações da vida moderna cotidiana, a ponto de haver sido criada a expressão “realidade virtual”.
Como se vê, seu trabalho prossegue agregando, das obras anteriores, as discussões, polêmicas, reflexões e inserções de objetos recorrentes somadas aos do novo contexto em debate. É um processo cumulativo de idéias, ideais e técnicas, mas com objetivos em comum. É como, se Walter tivesse a ânsia de adquirir e absorver todo o conhecimento e experiência da humanidade para expressar através de sua obra a necessidade do resgate da dignidade humana.
Nos trabalhos de 2001, Walter retoma o desenvolvimento da série Admirável Nova Idade Média (revisitada) usando a criança como tema para efetuar as comparações entre os dias de hoje e da Idade Média, prosseguindo suas pesquisas e sua evolução técnica do uso do computador apenas como mais uma ferramenta de expressão artística e não como objeto da Arte propriamente dita.
Outro trabalho interessante de 2001 é o Livro de Gaia, composto de 3 placas de computador unidas formando um livro. Cada placa é uma página, a primeira, trata do desenvolvimento do Homem da pré-história à Antigüidade, a segunda trata do período da Antigüidade até a Revolução Industrial e a última trata da fase da Revolução Industrial até os dias atuais. As placas de computador tiveram seus componentes eletrônicos rearranjados para melhor dispor os elementos figurativos na composição. Cada página contém objetos e/ou imagens relacionados ao tema como: na capa pedra lascada, pinturas rupestres, trigo, escrita cuneiforme, eclipse solar; na página dois espirais matemáticas, figura humana por Da Vinci, mapa mundi, peças mecânicas; na última página cogumelo atômico, urubus sobre um lixão, o relógio destruído pela bomba em Hiroshima, buraco de ozônio. O próprio livro da Terra é um hardware de computação, que tem a função, (e ai está analogia), de armazenar e computar informações. Walter insinua que a função bioevolutiva do Homem seria a de um armazenador de informação e conhecimento como um chip de memória de computador. A humanidade com toda sua multiplicidade, seria um único ser, que formaria o hardware completo que contém toda a informação existente suficiente para computar e guardar a sabedoria em relação a si, ao planeta e ao todo, formando um grande banco de dados, um software universal.
Em 2002, vem a série Reale et Virtuale, quando ele retoma a questão, iniciada em 1999 nas obras do Admirável Novo Milênio, sobre a percepção da verdade e da ilusão. A proposta é absolutamente filosófica. Logo na entrada da exposição, o artista desafia o espectador a identificar através de impressões gráficas de suas obras, quais são as reais (pintadas à mão) e quais as virtuais (criadas no computador). No interior da exposição está a resposta mostrando somente as obras reais.
Walter chama de reais os quadros feitos de matéria, ou seja madeira, tinta a óleo, objetos e peças coladas; e chama de virtuais os quadros feitos de energia, ou seja, informação digital criada e armazenada no computador, pois eles apenas existem como matéria no momento em que são impressos graficamente. A diferença entre os dois tipos de obras é indistinguível e evoca a questão do virtual parecer ser real e vice-versa. Ora, se não sabemos distinguir a realidade da ilusão em uma obra pictórica, imagine quanto da nossa percepção de mundo pode estar equivocada. A provocação de Walter é: afinal o que é a realidade? O que é realmente imprescindível? O que é virtualmente importante? Essas questões estão envolvidas dentro das temáticas nas obras do artista nesta série que revisita os admiráveis mundos: novo, velho, planetário, ecológico, humanista, tecnológico, político, social, etc. Os quadros desta safra estão mais detalhados e mais alegres, com mais objetos delicados, coloridos e mais figuras pintadas a óleo, ou seja, uma rede de correlações ainda mais elaborada para se observar. Obviamente também há quadros com críticas pesadas ao sistema, afinal é uma exposição de Walter Miranda.
Os trabalhos de Walter são sempre instigantes e reflexivos. Tomam-nos tempo, pois precisamos observar atentamente a riqueza de informações altamente intrincadas e relacionadas a questões sérias e profundas, que nos trazem de volta a fruição de olhar horas a fio para uma obra de Arte.
Flávia Venturoli Miranda - março/2004