de Walter Miranda Outubro - 1998/2022
Como já escrevi anteriormente, tenho expressado através de meus trabalhos as questões do cotidiano que me afligem conceitual e ideologicamente. Assim foi com as séries 1984 – O Estigma de George Orwell, Admirável Mundo Novo e Projeto Seattle, entre outras, onde utilizei peças de computadores e objetos do cotidiano incorporados à tradicional técnica da pintura a óleo. Dessa forma, a razão de existência desta exposição não poderia ser diferente.
Desde os anos 80, ao analisar as atitudes humanas em nossa época e tentar entender sua trajetória através de comparações com o passado, por meio de estudos pessoais da história humana, deparei-me com um forte paralelo na história: a Idade Média.
Todo o sentido de violência, insegurança, solidão, desespero social, riscos de epidemias, controle religioso, relações profissionais, deslocamento espacial, dependência do governo, injustiças sociais, angústias pessoais etc., que ocorrem atualmente, têm, a meu ver, certa similaridade com aquele período histórico.
Daí nasceu esta nova série de trabalhos Admirável Nova Idade Média, onde a intenção maior é provocar no espectador reflexões sobre o presente e o futuro usando as experiências do passado em uma abordagem análoga ao cíclico espaço tempo continuum, embora eu imagine que o tempo não deva ser representado exatamente por um círculo, mas por uma espiral (muito mais dinâmica, como é a vida), que tem algumas características aparentemente cíclicas, porque nasce em um ponto e cresce continuamente passando sempre pelos mesmos quadrantes que provocam certas similaridades porém sem se repetir.
O termo "Admirável" é derivado da série de quadros pintados por mim, baseados no livro Admirável Mundo Novo do escritor Aldoux Huxley.
Voltando ao paralelo histórico mencionado acima, sabemos que na Idade Média, o deslocamento das pessoas de uma região para outra era muito lento, pois o meio de locomoção mais veloz era realizado por meio de cavalos. Hoje a velocidade do deslocamento nas grandes cidades chega aos mesmos parâmetros da Idade Média devido aos congestionamentos (dentro das cidades, demoramos o mesmo tempo que na Idade Média para nos deslocarmos 20 quilômetros, por exemplo).
Assim como na Idade Média havia uma estrutura informal de comércio e prestação de serviços, atualmente a economia informal vem se fortalecendo nas grandes cidades. Havia pessoas que contratavam os serviços de artesãos deixando a matéria-prima em suas casas e passando periodicamente para retirar o produto acabado. Hoje, muitas empresas terceirizam suas atividades fornecendo matéria-prima a pessoas contratadas para executar o serviço em suas próprias casas e devolver na forma de artigos manufaturados. Outras empresas contratam profissionais autônomos para realizar serviços de entrega e transporte, a conhecida uberização. Além disso, com o avanço da informática, muitos profissionais liberais e executivos têm mantido seus escritórios em casa e usam os meios eletrônicos para enviar seus serviços às empresas, o chamado home office.
Na Idade Média, as cidades eram rodeadas de altos muros e portões, que eram fechados à noite, a fim de se proteger de ataques externos. No topo desses muros e portões ficavam a postos arqueiros vigiando a aproximação de possíveis inimigos. Como paralelo, temos hoje, os condomínios fechados ou mesmo áreas comerciais e residenciais, onde empresas de vigilantes são contratadas com a mesma finalidade de outrora. Assim, homens armados vigiam a entrada e o entorno dos conjuntos residenciais e se comunicam por meio de walk talkies.
Também os caminhos eram extremamente perigosos, assim como determinadas ruas nas grandes cidades de hoje, e a formação labiríntica das ruas em favelas e regiões pobres, não difere muito das condições de moradia na Idade Média. Também o saneamento básico era precário como em vários países hoje em dia.
Na época em que pintei os trabalhos dessa série, o risco de graves epidemias já era uma preocupação para algumas autoridades sanitárias mundiais, devido às facilidades com que os vírus e bactérias podem ser transmitidos. Isto tem gerado as mesmas preocupações que havia na Idade Média com as pestes, agora concretizadas com a atual pandemia do Covid-19.
A disseminação atual de religiões e a manipulação espiritual por meio delas, não tem sido muito diferente do maniqueísmo praticado por líderes religiosos na Idade Média. Da mesma forma, a proximidade do final do segundo milênio provocou várias previsões catastrofistas similares às do final do primeiro milênio e associadas ao do final do mundo.Não bastassem essas questões, durante a Idade Média, existia também uma perseguição religiosa de caráter violento e aquerrido que se repete hoje em dia com muita frequência e onipresença.
Assim como na Idade Média, as cidades de hoje são verdadeiros centros de novas ideias, tecnologias e poder, onde os governantes geralmente são prepotentes e mantêm-se isolados da população. Entretanto, a Idade Média não foi exatamente uma era de obscurantismo como muitos pensam e, talvez, a nossa era também não seja tão negra quanto alguns pessimistas apregoam. Nesse sentido, alguns acreditam que estamos no limiar de uma nova era. Se essa crença for real, esperemos que a Nova Renascença não demore a chegar, já que tudo tem evoluído e se modificado com extrema rapidez em nossos tempos (provavelmente, aconteceu mais eventos significativos no século XX do que em toda a história da humanidade).
Com tudo isso, a Nova Idade Média que vivemos hoje, apesar de suas dicotomias, parece-me tão admirável quanto a vivida por nossos antepassados, sendo que isso me animou a continuar expressando minhas desilusões e esperanças por meio da reutilização lógica e lúdica de resíduos do nosso cotidiano tecnológico contrapostos a elementos representativos da Idade Média.
Ao respeitar a persistente recorrência no uso de alguns elementos simbólicos, tais como a imagem do planeta Terra, sementes e folhas, bem como imagens de bailarinos (usados em outras séries de trabalhos), procuro expressar a situação de desequilíbrio existencial do homem em relação ao planeta, hoje em dia. Dessa forma, procuro criar uma analogia, através do contraponto entre os elementos referentes à Idade Média e os elementos representativos da contemporaneidade.
A composição construtivista dos quadros por meio da Proporção Áurea, usada em suas dimensões, gera planos pictóricos conseguidos por meio de texturas e sobreposições de tintas em camadas espirradas, enrugadas e pinceladas abstratas e gestuais. Porém, esses planos geométricos rígidos são atenuados com o uso das linhas elegantes e orgânicas da espiral logarítmica (para mim associadas ao ritmo da vida e do tempo) e com o uso de harmonias cromáticas resultantes de extensa pesquisa sobre a cor.
O resultado, creio, é formado por obras pictóricas contemporâneas não convencionais, onde o universo simbólico exerce grande força visual no espectador.
Walter Miranda – 1998/2022