De tempos em tempos, vemos publicada em jornais e revistas a polêmica sobre a fragilidade de algumas obras de arte no que concerne à utilização de materiais de discutível durabilidade e o argumento de que é mais importante o preparo adequado para o recebimento das obras do que sua fragilidade. Penso haver uma série de equívocos na polêmica, porque são misturados produção, circulação e comercialização de obras de arte, sendo que o grau de ligação entre os três está diretamente relacionado com interesses conflitantes. Nesse sentido, gostaria de externar algumas opiniões a respeito.
Em primeira instância, arte é um conceito criado pelo ser humano para explicar a materialização de algumas formas usadas, por ele, na expressão de suas angústias, anseios, alegrias e esperanças ou, sua relação (material, espiritual e filosófica) com o universo à sua volta. Nesse sentido, a produção de uma obra de arte não está diretamente relacionada com a sua venda, mas sim com a relação, passiva ou ativa, estabelecida entre ela e o seu espectador. Até princípios do século XX, a tradição mandava que uma obra de arte fosse eterna. Para tanto, estava implícito que ela fosse constituída de materiais de longa durabilidade. Com a possibilidade de efetuar pesquisas usando diversos materiais proporcionados pelas novas tecnologias, o artista plástico passou a criar obras de arte explorando "novos horizontes", inclusive conceituais. Estes fatores facilitaram a execução material das obras e popularizou os processos criativos. Dentro dessa nova realidade, a obra artística ganhou importância conceitual.
Ainda em nome da relação obra/espectador, a produção de uma obra de arte envolve uma preocupação muito forte com a sua circulação, fato que faz com que ela seja tratada como um produto material. Como a circulação, em muitos casos, cria circunstâncias adequadas para a deterioração das obras, surgiu, então, mais um argumento a favor da perenidade da obra de arte. Fechando o círculo, essa perenidade aumentou a consciência de que era possível comercializar aquele tipo de produto, situação que acabou por subordiná-lo ao mercantilismo, acrescentando à obra de arte uma nova característica,
a de Mercadoria.
Sendo assim, quando uma obra de arte é vendida ela está sendo o motivo de uma transação. Isto significa dizer que o vendedor deve ser franco sobre as limitações e qualidades da mercadoria negociada, esclarecendo ao comprador as condições técnicas e ambientais adequadas para a preservação do produto/obra de arte, em outras palavras, se ela é realizada com materiais que garantem alguma durabilidade e sob quais circunstâncias. Em contrapartida, também o comprador deve ter o mínimo de conhecimento a respeito do produto a ser comprado para poder indagar sobre ele ou, pelo menos, deve saber onde procurar informações sobre as características do produto que pretende comprar, como costuma fazer quando compra um eletrodoméstico ou um alimento enlatado.
A comparação pode parecer infeliz dada a frieza material que, aparentemente, nada tem a ver com uma obra de arte. Mas, apesar da redundância, é bom reafirmar que a questão já não se atém unicamente à obra e sim à uma transação comercial e vale lembrar que hoje em dia, muitas vezes, os artistas dependem do patrocínio de empresários ou instituições empresariais para realizar seus projetos culturais e artísticos. Portanto, o relacionamento entre o setor privado e a produção cultural termina sendo um tipo de relacionamento, como outro qualquer, onde as partes têm interesses específicos. De um lado, conceitos pertinentes ao setor econômico como competitividade, lucro e patrimônio (que as obras passam a ser após sua aquisição, na visão de um empresário), do outro a liberdade de criação, a circulação da obra de arte para que ela cumpra a sua função e amplie a definição de "Arte", além da comercialização da obra, afinal, o artista necessita sobreviver.
Acontece que, em função dos novos conceitos artísticos e contemporâneos, algumas vezes, o artista acha que a obra de arte contemporânea , sendo conceitual, é um produto platônico, ou seja, a produção de uma obra não está atrelada a questões de durabilidade e perenidade apesar de sua circulação e comercialização. Como quem compra a obra, por mais idealista que seja, quer que o investimento monetário seja garantido com a durabilidade da obra, seja para a valorização de seu acervo, seja para conservá-la para a posteridade, seja para uma possível negociação futura, surge o contra-senso e voltamos à velha questão comercial.
Portanto, se o artista quer vender o seu trabalho, desde que ele mantenha um processo criativo que atenda às suas necessidades conceituais mantendo a sua dignidade intelectual, parece-me lógico que ele se preocupe em cativar o comprador. Dessa forma, além da integridade criativa e qualidade, se ele se preocupar com a durabilidade de sua obra, terá mais um argumento que, provavelmente, conquistará o comprador, já que me parece estranho visualizar uma transação comercial, portanto capitalista, onde o vendedor/produtor não precisaria se preocupar com as qualidades materiais do produto vendido porque o comprador é quem teria a obrigação de cuidar da preservação deste produto.
Creio que o artista não se preocupa com a durabilidade de sua obra também não deveria procurar a comercialização dela, mas apenas a sua circulação e, ainda assim, em certas condições. Para mim isto seria mais coerente com a produção de uma arte conceitual, pois ela estaria acima das questões mercadológicas que, verdade seja dita, por muitas vezes, têm atrapalhado a produção e circulação da arte contemporânea no mundo.
Por outro lado, se os efeitos da deterioração fizerem parte do conceito da obra, como muitas vezes ocorre hoje em dia, não faz sentido a sua preservação, pois isto contraria o conceito, já que nesse caso, sua existência deixa de ser física e somente resiste ao tempo devido ao seu registro através de outros meios, tais como, textos, vídeos, filmes, slides, fotos, etc. Aliás, normalmente os artistas contemporâneos fazem uso de novos materiais em detrimento de materiais ortodoxos que não atendem mais aos seus anseios. Esta substituição não atrapalha a produção e o conceito da obra e, se ela é justificável, também o são as substituições que fazem uso de materiais que garantam a durabilidade da obra.
Janeiro/1997
Walter Miranda