Há alguns anos, conversando com um amigo, ouvi opiniões muito interessantes sobre o artista plástico e a conceituação de trabalho. Naquele momento, discutimos vários pontos de vista sobre a profissão do artista plástico. Afinal:
Penso que, com o advento da Revolução Industrial, iniciaram-se as grandes discussões ideológicas que, pelo menos, ameaçaram os detentores dos meios de produção na época. Afinal, eles eram acusados de desfrutar (sem um pingo de esforço) do trabalho executado por outros. No cerne das discussões existiam duas polêmicas:
1) O valor de uma mercadoria depende da sua utilidade.
2) O valor de uma mercadoria depende do trabalho utilizado na sua fabricação.
Uns diziam que o sentido da palavra “utilidade” era relativo porque dependia do sentimento de quem ia comprar. Outros diziam que o sentimento de quem ia comprar dependia da necessidade advinda do seu modo de vida e nível social. Uns diziam que o trabalho utilizado dependia da quantidade de mercadoria fabricada. Outros diziam que a quantidade de mercadoria dependia da lei de oferta e procura. Para complicar ainda mais, apareceram outros dizendo que a lei de oferta e procura foi deturpada com o advento da propaganda, que tem o poder de direcionar a opinião do comprador em potencial.
Disso tudo, surgiram os grandes conflitos sociais, conhecidos por todos nós e que, em todos os casos, culminaram com algum tipo de “ismo”. Para piorar tudo, o nosso (do Brasil) “ismo” não está nem prá lá, nem prá cá. Reina a deturpação generalizada. As regras não são bem definidas e mudam de acordo com os interesses dominantes.
Hoje, nossa política econômica não está comprometida com os meios de produção, mas apenas com os meios de especulação, camuflados pelo uso dialético da palavra globalização. E quando há alguma guinada na política econômica nossa classe dominante cria mecanismos econômicos que valorizam mais o consumo que a produção; o mercado que os custos; a quantidade que a qualidade. Enfim, sempre estamos valorizando o relativo em detrimento do absoluto.
E não dá mais para discutir isso com os economistas, banqueiros, empresários ou quem de direito. É o que é! São leis imutáveis!
Ora, se toda essa confusão ocorre em função de coisas quantificáveis, o que dizer então de coisas conceituais como a obra de arte e o trabalho do artista?
Essa discussão é muito antiga e até a Renascença, tudo se resumia em trabalho braçal que era pago em função do material usado, do tempo necessário para a execução e das dificuldades técnicas de cada encomenda.
Com a utilização da tela como suporte, ficou mais fácil transportar as pinturas na Renascença e elas se transformaram em mercadorias próprias de um mercado mais acessível.
Paralelamente a isso, o conceito da palavra “artista” começou a ser mitificado, já não significava mais ser um mero “artesão”, um mero ser humano. No começo (os artistas eram poucos), tudo era uma beleza! Era muito cômodo para os novos “semideuses”, que se dignavam a mostrar sua divindade por meio de obras de arte, serem tratados com reverência. E, no final do século XIX e início do século XX, os artistas começaram a abandonar o ofício das artes. Já não era mais necessário o domínio da “cozinha artística” e a coisa complicou-se ainda mais, pois o que era comensurável passou a ser conceitual.
Se na Idade Média as obras eram pagas em função do trabalho executado em número de horas, material usado e desafios técnicos, com a mitificação do artista o valor da obra de arte passou a ser relativo. Dependia do nome do artista e de seu status. Já não valia tanto a qualidade técnica do trabalho, até porque muitas vezes ele era conceitual, o que relativizava, ainda mais, a relação obra/preço. Uns diziam que uma obra (arte) não podia mais estar atrelada apenas a questões absolutas (técnicas). Outros diziam que o conceitual tinha de estar necessariamente ligado ao ofício. A discussão continua até hoje. Talvez a posteridade consiga chegar a alguma conclusão. Duvido!
O fato é que, independentemente do lado filosófico, após a Revolução Industrial, a sociedade passou a valorizar a matéria/mercadoria relacionada a uma linha de produção e a necessidade de consumo produzida artificialmente. A partir daí, os artistas (agora muitos e muitos) passaram a ser caracterizados como “vagabundos”, pois eles não produziam bens essenciais à sociedade de consumo. Somente gostavam de passar o tempo pintando, esculpindo, gravando, desenhando, etc.
Van Gogh foi protagonista de grandes dramas em função da dicotomia trabalho/produto e suas cartas mostram o quanto isso o perturbava. As pessoas consideravam-no louco, beberrão, inútil à sociedade materialista e mercantil (a maioria dos artistas, com raras exceções, já experimentou essa situação, a começar com a própria família).
O trabalho passou a ser relacionado com um suposto lucro financeiro e, não mais, com o tempo dedicado a uma atividade. Essa é a herança ingrata que o artista recebeu de uma sociedade baseada em conceitos superficiais.
Assim, todo artista considerado “desconhecido” pelo mercado de arte, mesmo que passe todos os dias pintando, esculpindo, gravando, desenhando, normalmente não é classificado como profissional, ao passo que um artista “famoso”, que tenha uma vendagem (participante do mercado), mesmo que leve uma hora para produzir uma obra e passe o resto do tempo na boêmia, será considerado profissional.
A meu ver, os dois exemplos de artistas, acima citados, são trabalhadores. Cada um dentro da especificidade de uma atividade ampla onde é difícil determinar as fronteiras: a Arte.
Arte, antes de tudo, é um conceito criado pelo ser humano para explicar uma das formas usadas para expressar suas angústias e anseios, a sua relação (material, espiritual e filosófica) com o mundo à sua volta. Enfim, para expressar os seus sentimentos. Nesse sentido, tanto ontem como hoje, a função maior da obra de arte não é a sua venda, mas a sua relação com o espectador, sem necessariamente impingir no observador a mesma intenção do autor já que nunca se consegue decifrar todos os elementos, conceituais ou materiais, implícitos em uma obra. Até porque, a arte é um tipo de linguagem e, como tal, pode dar margem a vários tipos de interpretações.
Sendo assim, penso que o conceito de profissionalismo advém do fato de o artista ter uma produção frequente e levar esta produção a público através de exposições, salões, mostras, etc. Não basta produzir e deixar a obra escondida embaixo da cama ou mostrar apenas aos familiares e amigos, isto faz dele um artista, mas não um profissional da arte. Quanto à venda da obra, isto é uma consequência que independe do ato da criação e que está atrelada ao mercantilismo capitalista e materialista explicado anteriormente.
Como o artista plástico tem o péssimo hábito de precisar comer, vestir-se e ter moradia para viver decentemente, ele precisou adaptar-se às regras da sociedade materialista. Como não se pode evitar o fato de que a obra de arte, após estar pronta, adquira também o conceito de produto, há de se ter o devido cuidado para não misturar a água com o vinho. Existem obras que têm uma receptividade mercadológica e outras não. Entretanto, isso não diminui nem valoriza a produção artística de nenhum artista, são apenas características atreladas a questões mercantilistas ou de interesses particulares; são apenas faces de um mesmo polígono.
O artista plástico, independentemente de sua técnica, estilo e conceito, será profissional se tiver uma produção artística consistente e leve o seu trabalho a público com certa frequência. Se o nível técnico ou conceitual do trabalho é bom ou ruim, isto é outra estória, afinal, existem bons e maus profissionais em todos os ramos da atividade humana.
Há que lembrar, que arte é uma manifestação humana presente em todas as culturas (de uma forma ou de outra), em todos os tempos, e que nunca dependeu de fatores alheios aos seus motivos essenciais. Até porque, quando a arte nasceu, na pré-história, nem mercado de arte havia!!!
Walter Miranda – Maio/1991
Revisado e atualizado em Dezembro/2001