Desde os anos 1980, a temática ecológica tem sido constante em minha produção artística, assim como a incorporação de placas de computadores e outros acessórios do nosso cotidiano tecnológico. A série de trabalhos denominada “CARTOGRAFIAS DE GAIA” apresenta obras que reproduzem diversas projeções cartográficas para tratar da situação atual de degradação ambiental no planeta. A degradação planetária, provocada pelas ações do ser humano ávido por enriquecimento imediato, conforto material desmesurado e pela presunção de que, com a tecnologia, podemos dominar a natureza.
Os trabalhos bi e tridimensionais foram realizados por meio da utilização da tradicional técnica da pintura a óleo e da incorporação de objetos descartados pela sociedade contemporânea. A utilização conjunta desses dois fatores aparentemente antagônicos (tradição e contemporaneidade) gera o desafio compositivo de obter uma harmonização visual durante o processo criativo de cada trabalho que, quando concluído, provoca no observador reflexões filosóficas sobre a poluição do meio ambiente e o consequente declínio da qualidade de vida do homem no planeta.
O suporte para os trabalhos são a madeira, objetos de plástico, esfera de alumínio e a tradicional tela. Nos suportes foram incorporados objetos descartados pela sociedade contemporânea, tais como: placas de computador (serradas e esmerilhadas ou em pedaços e cacos), componentes eletrônicos (processadores, chips, alto-falantes, diodos, capacitores e resistores), teclados de computador, cartões de crédito, balas de revólver, moedores de carne, balanças, chaves, cadeados, relógios e cúpulas de relógios, filme plástico de PVC (poli cloreto de vinila), canudos e presilhas de agulhas para acupuntura, bijuterias, moedas, palitos de fósforo queimados, cascas de lápis apontados, farelos de borracha, cacos de vidro etc. Também incorporei elementos da natureza, tais como: sementes, conchas, caracóis, terra, areia, pedras, casco de tatu etc.
Todos os componentes que eu usei foram colocados de acordo com um planejamento de ordem estética a fim de criar texturas e efeitos visuais peculiares que provocam a curiosidade do espectador. Em alguns quadros, pintei de forma realista (como detalhe) o mapa da região apresentada no quadro inteiro a fim de criar um elo que fecha o quadro em si mesmo, ou seja: o quadro é um detalhe dele mesmo e um detalhe dele é o quadro todo.
Cartografias de Gaia tem um total de 44 obras em que utilizei a interpretação artística de projeções cartográficas da seguinte forma:
OBRAS BIDIMENSIONAIS
• 1 painel medindo 2,5mX2,5m foi feito com placas de circuito impresso, teclados de computador e mouses;
o Ele representa a importância extrema que o homem dá ao uso da tecnologia atualmente. Por isso, a terra é representada como um óvulo, cuja camada de proteção é composta por teclados de computador e os espermatozoides que tentam penetrar o óvulo são representados por mouses;
• 5 quadros em formatos cartográficos ovais, semicirculares ou multiformes apresentam todas as regiões do planeta.
o Esses trabalhos foram preenchidos com cartões de crédito (símbolo do consumismo desenfreado); chaves (símbolo de abertura ou encerramento de caminhos humanos), placas de computador (símbolo da tecnologia atual), diversos CDs (que representam a brilhante e aparente riqueza proporcionada pela tecnologia atual), canudos e presilhas de acupuntura, mini interruptores eletrônicos, diodos, resistores e capacitores eletrônicos etc.
o Um dos quadros foi feito com 30.000 diodos eletrônicos + 2.500 canudos e 1.600 presilhas de agulhas de acupuntura + 500 capacitores e 400 resistores eletrônicos. Ele também apresenta as cinco ilhas de resíduos plásticos que flutuam de forma concentrada em algumas partes dos oceanos.
• 3 quadros ovais com o mapa-múndi representam a evolução dos continentes durante as eras geológicas .
o Eles representam a progressão da poluição tecnológica gerada pelos humanos ao longo do tempo, pois os trabalhos estabelecem um paralelo evolutivo desde os primórdios das civilizações, quando o homem se espalhou pelo planeta usando materiais naturais para conquistar o meio ambiente, até os dias de hoje, em que o homem está poluindo o planeta de forma inimaginável. Os quadros foram preenchidos com sementes de goiaba, lascas de lápis apontados e resíduos de placas eletrônicas, plásticos, metais etc.;
• 2 quadros apresentam as formas dos primeiros mapas-múndi, criados em 1507, onde aparece pela primeira vez a representação das Américas.
o Um deles foi preenchido com placas de circuito eletrônico, sementes de goiaba e presilhas de agulhas de acupuntura; e outro foi preenchido com lascas de lápis apontados, que representam o desmatamento europeu no século XVI.
• 6 quadros circulares representam regiões do planeta preenchidas com restos de objetos que se relacionam com as características de cada região, a fim de representar a poluição causada pelo consumo excessivo de materiais processados pela indústria atual.
o Na América do Sul, usei palitos de fósforo para representar as queimadas florestais;
o Na Europa, usei pequenos pedaços de placas de computador para montar um mosaico visual representativo das diversas minirregiões que compõem o continente;
o Na África, usei a areia devido à influência marcante do Saara, bem como da seca em diversas regiões daquele continente;
o Na América do Norte, usei diversos chips e processadores de computador para representar a característica da sociedade tecnológica local;
o Na Ásia, usei cascas de lápis apontados para representar a cultura manual que ainda hoje se mantém imperativa na região;
o Na Oceania, usei detritos de placas de computador para representar a dominante produção industrial na região e que tem suprido o mercado mundial de bens eletrônicos;
Ao fundo de alguns quadros, pintei mãos e pés (que representam a ocupação humana do planeta). Em outros, manuscrevi um texto, que segue padrões lineares compositivos específicos de cada trabalho. Este texto, Carta do Chefe Seattle, é conhecido mundialmente e tem uma história muito curiosa: O chefe indígena norte-americano Seattle fez um discurso, em 1855, durante um tratado de paz em que as terras indígenas foram vendidas em troca de uma reserva. Esse discurso foi presenciado por um admirador seu, Henry A. Smith, que o publicou em um jornal local em 1887, baseado em suas lembranças sobre o discurso. Em 1971, o discurso sofreu alterações feitas pelo roteirista, Ted Perry, para um documentário sobre ecologia. A partir daí, o texto passou a ser conhecido mundialmente como a carta resposta do Chefe Seattle ao presidente norte-americano Franklin Pearce. Embora, a autoria seja ambivalente, essa comunhão de textos, a meu ver, apresenta uma mensagem, que se torna cada vez mais atual, para a humanidade. Por isso, resolvi incluí-la em parte desta série de trabalhos. Os interessados na íntegra do texto podem acessá-lo em meu site: http://www.fwmartes.com.br/imprensa/114/carta-do-chefe-seattle
• 2 quadros circulares apresentam os polos terrestres;
o Na Antártida usei detritos de componentes eletrônicos para representar as marcas da ocupação humana e científica no continente ainda pouco explorado;
o No Ártico também usei cascas de lápis apontados, porém sujas com tinta e óleo, para representar as marcas da poluição humana no continente pouco habitado.
• 1 quadro circular representa todos os continentes vistos simultaneamente e preenchidos com pedaços de placas de computador completamente sujas com óleo industrial (outro símbolo da poluição tecnológica).
• 1 quadro circular, pintado em cores soturnas, representa a imagem do planeta sem água;
o No quadro “Sem Água”, usei uma mistura dos rejeitos que usei nos demais quadros para representar os continentes e que, incorporados à pintura a óleo, transformam-se em uma representação dramática de uma imagem captada por meio de radar e divulgada pela Agencia Espacial Europeia, do que seria a Terra sem a água. Essa imagem está sobreposta a um círculo preenchido com cacos de vidros mostrando os limites da água, que gera a forma arredondada do planeta, incutida em nosso inconsciente coletivo.
• 3 quadros com cartografias extravagantes apresentam mapa-múndi preenchido com mini botões eletrônicos de pressão, sementes de goiaba e presilhas de agulhas de acupuntura;
o Dois deles têm a forma losangular, sendo que os oceanos foram feitos em alto relevo usando serragem de placas de circuito impresso e detritos de componentes eletrônicos e as áreas do Ártico e da Antártida foram preenchidas com presilhas de agulhas de acupuntura. Um deles tem os continentes preenchidos com 5.000 mini botões eletrônicos de pressão e presilhas para agulhas de acupuntura.
o O terceiro quadro tem a forma análoga a um coração, reproduzindo uma das diversas projeções cartográficas que existem.
• 2 quadros apresentam mapa-múndi de ponta cabeça.
o Trata-se de uma homenagem ao pintor uruguaio Joaquim Torres Garcia que, na primeira metade do século passado, postulou uma nova forma de ver o mundo sem o ponto de vista convencional usado pela cultura ocidental.
• 1 quadro oval apresenta o mapa-múndi pintado de forma inversa, como se o observador da obra estivesse dentro do quadro observando os espectadores do trabalho;
• 1 quadro oval, apresenta o mapa-múndi “deitado”;
• 1 quadro circular bilateral (frente e verso) representa a real natureza e beleza do planeta;
• 1 quadro retangular feito de retalhos de madeira, pequenas placas de computadores e canudos de acupuntura recortados, representam a beleza visual da poluição atmosférica;
• 3 quadros retangulares apresentam a Terra recortada vertical, diagonal e horizontalmente aludindo ao desequilíbrio ambiental e o descompasso entre o uso da tecnologia e a integração com o planeta de forma sustentável.
• 2 quadros ovais apresentam a África e a América do Sul em evidência e os demais continentes de forma facetada;
o A África e a América estão centralizadas e pintadas de forma realista e os demais continentes estão geometricamente facetados. Assim, a parte central é vista de forma natural e as laterais como se fossem as faces de um diamante para representar o planeta visto por um prisma e como uma pequena joia imersa na infinitude do universo.
OBRAS TRIDIMENSIONAIS
• 1 objeto modular montado em forma de torre, feito com teclados de computadores;
o A base do objeto tem a forma octogonal, o primeiro módulo tem a forma hexagonal, o segundo módulo tem a forma pentagonal, o terceiro módulo tem a forma quadrática, o quarto módulo tem a forma triangular e a parte superior é composta por uma esfera.
• 3 “Livros de Gaia”, cujas páginas são placas de computador + objetos, contam o processo do desenvolvimento tecnológico humano e sua relação com o planeta, Gaia.
• 2 objetos, “A Máquina do Juízo final” e “O Equilíbrio Vital”, foram executados a partir do reaproveitamento de um moedor de carne e uma balança.
o O primeiro apresenta a Terra sendo moída em um moedor de carne, e o segundo apresenta a Terra em uma balança enquanto um homem avalia o Sol e a Lua. Ambos representam a coisificação da natureza e de valores filosóficos universais transformando-os em meros valores materiais.
• 2 objetos tridimensionais que apresentam a Terra em forma de ovo acoplada sobre placas de computador abordam as questões ecológicas que podem afetar o equilíbrio climático no planeta.
• 1 objeto em forma sextavada representa o lixo eletrônico despejado ao redor do planeta.
INSTALAÇÃO
• 1 instalação composta de 1 quadro circular e bilateral com imagem do planeta pintada na frente e no verso; imagens digitalizadas; 38.000 botões eletrônicos de pressão; acetato de contato para teclados; marcadores eletrônicos de tempo; globo de plástico; tampo de monitor e seringa subcutânea abdominal.
PERFORMANCE
• 1 performance em que é abordada a grave situação ecológica em que o planeta se encontra devido às ações humanas. A peça tem duração de vinte minutos e conta com a participação do grupo “Suspiro na Arte”. Nela é apresentada a venda fictícia do planeta Terra por um empresário superpoderoso e que não se importa com as injustiças sociais e econômicas existente entre os países.
Em consonância com os quadros expostos, a ideia essencial da instalação e da performance é demonstrar a finitude do planeta Terra e lembrar que o peso das nossas ações coloca em risco o próprio planeta e as nossas vidas.
Finalmente, cabe dizer que esta série de trabalhos, em que uso o mapa-múndi para expressar minhas preocupações atuais enfatiza meu “modus operandi”, já que em toda a minha produção artística, procuro sempre unir a razão à emoção (base de meu processo criativo) a fim de criar uma obra que faz uso de técnicas tradicionais incorporadas a elementos da sociedade atual para estabelecer diversas relações metonímicas que provocam questionamentos no espectador. Nesse sentido, a linguagem subjetiva que uso para expressar meus sentimentos, anseios, ideias e conceitos filosóficos possibilita que o observador tire suas próprias conclusões sobre o tema abordado em cada série de trabalho. O resultado é a cumplicidade ou a negação, não importa. Ambas formam um tipo de envolvimento que remetem à essência do que tento transmitir.
Walter Miranda - agosto/2019