A arte de transformar dificuldades em vantagens
O artista plástico Walter Miranda se considera um defensor da técnica na pintura. Entre seus argumentos, está o de que, para voar mais alto, é preciso saber como gastar menos energia, ou seja, é o conhecimento que traz resultados cada vez melhores em qualquer atividade.
Entre julho e agosto últimos, ele apresentou a exposição Réquiem a Gaia - In Totum, na Reitoria da Unesp. A atividade se insere no Projeto 15x15, parceria entre a Universidade, por intermédio de seu Comitê de Artes e Cultura ligado à Pró-reitoria de Extensão Universitária, e a Associação Profissional de Artistas Plásticos de São Paulo, da qual é presidente no triênio 2013/2015.
Miranda mostrou mapas em que alerta para a destruição da natureza pelo ser humano. Para isso, apropria-se dos mais diversos objetos e materiais, como cartões de crédito, palitos de fósforos usados, placas de computador ou lascas de lápis apontados. São elementos que trazem conteúdo simbólico e, acima de tudo, preocupações estéticas.
Nascido em 1954, no bairro de Itaquera, em São Paulo, SP, Miranda, filho de pais separados, frequentou, dos 9 aos 12 anos, um colégio interno. Foi ali que teve a sua primeira experiência com a arte. A professora pediu que as crianças fizessem um desenho, e o dele mereceu destaque.
Passou a ser sempre chamado à lousa para fazer desenhos e ajudar a professora nas aulas. Pouco depois, começou a confeccionar pequenos gibis que vendia na feira próxima de sua casa para ganhar algum dinheiro.
Mais tarde, estudou ilustração na Escola Panamericana de Arte, onde recebeu o estímulo do ilustrador e desenhista de histórias em quadrinhos Nico Rosso, que o aconselhou a fazer aulas de modelo vivo na Pinacoteca do Estado de São Paulo. A atividade semanal era coordenada pelo artista plástico Gregorio Gruber.
No curso da Pinacoteca, além de aprender muito, tanto pela prática de desenho quanto ouvindo os comentários do professor e dos colegas, Walter Miranda passou a atuar ele mesmo como modelo. Não só ali, mas em outras instituições de ensino. Essa atividade multiplicou as oportunidades para conviver com diversos artistas, e, também, de ouvir muitos comentários em sala de aula sobre arte e sobre técnicas de desenho e pintura.
No início da carreira, os trabalhos de Miranda apresentavam uma forte vertente social. O primeiro quadro que vendeu, por exemplo, retratava um soldado em primeiro plano, uma nuvem de gás lacrimogêneo vinda do solo e estudantes correndo.
A ideia era mostrar que não era apenas um único militar que amedrontava os jovens, mas sim todo um contexto que o apoiava e que estava fora do quadro no mundo real do espectador.
Naquela época de iniciante, a falta de condições financeiras para comprar material de trabalho levou Miranda a desenvolver alternativas para conseguir se expressar plasticamente. Nos anos 1980 desenvolveu um processo no qual desmanchava revistas, batia o papel no liquidificador e, usando pedaços de madeira como prensa, criava bases com espessura de 8 mm. Depois fazia desenhos e pinturas sobre as bases.
As dificuldades foram se tornando vantagens que o estimularam a erguer com as próprias mãos seu ateliê. Ele se localiza no bairro paulistano do Sacomã. Possui um pé direito bem alto, de sete metros, e amplas vidraças. A observação do mundo e a prática no lidar com diferentes materiais tornaram-se uma marca registrada. Foi por essa via que Walter Miranda chegou ao uso artístico de placas de computadores.
Ao frequentar a casa do amigo e escultor Roberto Gianecchini, que trabalhava para uma empresa francesa consertando e trocando micros, Miranda enxergou nas placas de processadores vistas aéreas de cidades. Levou algumas para o ateliê e começou a usá-las em seus trabalhos. Inicialmente, utilizava cada uma delas no tamanho original. Depois, realizou pesquisas serrando e adaptando o material de acordo com seus objetivos visuais.
Uma característica constante do trabalho de Walter Miranda são os mapas. Com o fim da ditadura militar, continuou a ser contestador, mas seu foco se ampliou. Sua crítica passou a demonstrar a maneira a maneira irresponsável com que se usa a tecnologia apenas para gerar dinheiro, deixando de lado o respeito à natureza. A região paulistana onde nasceu, por exemplo, que anteriormente era repleta de verde, tornou-se uma selva de asfalto e concreto.
Miranda foi professor no Liceu de Artes e Ofícios, de 1986 a 1995, e desde 1996 dá aulas em seu atêlie. Sua atividade como professor inclui desenho, aquarela, pastel, nanquim, figura humana e pintura. Ele também profere palestras, conferências e workshops em escolas de arte, instituições culturais, faculdades e universidades. Graças a essas atividades, Miranda vem observando que atualmente há muitos jovens artistas com pouco espaço para expor. Esse quadro se agrava com as universidades recebendo jovens do ensino médio com carência de formação básica em artes, tanto na prática como na teoria. O resultado é que os quatro anos de curso superior são um período muito curto para fornecer uma melhor bagagem de referências, essencial para que se crie um patamar de conhecimento que o artista possa usar ao longo da carreira.
Miranda diz que aprendeu na ditadura a importância da lógica e da inteligência. Como era impossível vencer pela força, a alternativa estava no convencimento da sociedade pelos argumentos. Do mesmo modo, quanto mais o jovem artista conhecer desenho, perspectiva e noções de luz e sombra, mais poderá desaprender, sintetizando e estilizando, para encontrar a própria forma de expressão.
Oscar D'Ambrosio - Revista Unesp Ciência - Pags. 42 e 43 - outubro de 2014
Requiem a Gaia - O estigma do Chefe Seattle
RÉQUIEM A GAIA - O ESTIGMA DO CHEFE SEATTLE
Desde os anos 80, a temática ecológica é uma constante em minha produção artística, bem como a incorporação de placas de computadores e outros tipos de acessórios tecnológicos e eletrônicos.
A série RÉQUIEM A GAIA trata da atual situação de degradação ambiental no planeta provocada pelas ações do ser humano ávido por um enriquecimento imediato.
Seis quadros circulares representam regiões do planeta, por meio de mapas geográficos, e a poluição ambiental pertinente a cada uma. Cada região é pintada de forma realista, como um detalhe de cada trabalho, e colocada dentro de uma cúpula de vidro, a fim de criar um elo que fecha o quadro em si mesmo. Mundi I, representado por um mapa-múndi, é o sétimo trabalho e aborda o caráter materialista da nossa sociedade contemporânea.
Esta série de trabalhos foi realizada em técnica mista: óleo + peças de computador e diversos objetos sobre madeira, além de textos manuscritos e filme plástico de PVC (policloreto de vinila) para criar texturas e efeitos visuais peculiares que, comparados aos demais elementos colados aos quadros, provocam a curiosidade do espectador. Também há a incorporação aos quadros de vários elementos do nosso cotidiano tecnológico, tais como, placas de computador (serradas e esmerilhadas), processadores, chips, alto-falantes, cartões de crédito, relógios, chaves, cadeados, cúpulas de relógios, balas de revólver, bijuterias, moedas, palitos de fósforos queimados, cascas de lápis apontados, farelos de borracha etc; além de elementos da natureza, tais como, sementes, conchas, caracóis, terra, areia, pedras, casco de tatu etc. Tudo com a intenção de provocar reflexões filosóficas sobre a questão do meio ambiente e do homem no planeta.
Nesse sentido, as seis regiões do planeta foram preenchidas com restos de objetos que se relacionam com as características de cada região, a fim de representar a poluição causada pelo consumo excessivo de materiais processados pela indústria humana, ou seja:
§ na América do Sul usei palitos de fósforo para representar as queimadas;
§ na Europa, usei pequenos pedaços de placas de computador para montar um mosaico visual representativo das diversas mini regiões que compõem o continente;
§ na África usei a areia devido à influência, marcante do Saara, bem como da seca em diversas regiões daquele continente;
§ na América do Norte usei diversos chips e processadores de computador para representar a característica da sociedade tecnológica;
§ na Ásia usei cascas de lápis apontados para representar a cultura manual que ainda hoje se mantém imperativa na região;
§ na Oceania usei detritos de placas de computador para representar a dominante produção industrial nesta região e que tem suprido o mercado mundial de bens eletrônicos nas últimas décadas.
§ o mapa-múndi I apresenta todas as regiões do planeta preenchidas com cartões de crédito, símbolo maior do consumismo desenfreado da sociedade contemporânea.
Ao fundo de alguns quadros manuscrevi um texto, que segue padrões lineares compositivos específicos de cada trabalho. Este texto, Carta do Chefe Seattle, é conhecido mundialmente e tem uma história muito curiosa:
O chefe indígena norte-americano Seattle fez um discurso, em 1855, durante um tratado de paz em que as terras indígenas foram vendidas em troca de uma reserva. Esse discurso foi presenciado por um admirador seu, Henry A. Smith, que o publicou em um jornal local em 1887, baseado em suas lembranças sobre o discurso. Em 1971, o discurso sofreu alterações feitas por um roteirista, Ted Perry, para um documentário com tema ecológico. A partir daí, o texto desse documentário passou a ser conhecido mundialmente como a carta resposta do Chefe Seattle ao presidente Norte-americano.
Embora, a autoria seja ambivalente, essa comunhão de textos, a meu ver, apresenta uma mensagem para a humanidade que se torna cada vez mais atual. Por isso, resolvi reaproveitá-la e incluí-la nesta nova série de trabalhos, denominada “RÉQUIEM A GAIA”.
Em síntese: Em minha produção artística, procuro sempre unir a razão ao sentimento (base de meu processo criativo), para criar uma obra que faz uso de técnicas tradicionais incorporadas a elementos da sociedade atual e que estabelece diversas relações metonímicas que provocam questionamentos no espectador. Meu objetivo é que ele tire suas próprias conclusões sobre o tema abordado através de uma linguagem subjetiva. O resultado é a cumplicidade ou a negação, não importa, pois ambas formam um tipo de envolvimento que remetem à essência do que tento transmitir.
Outono/2008 - Walter Miranda