O HOMEM VITRUVIANO - Relatos de uma ideia cosmogônica (segunda parte 2/2)
Resumo: Uma síntese da história do desenho denominado “Homem Vitruviano” feito por Leonardo da Vinci. Inserido no inconsciente coletivo ocidental e contemporâneo devido à sua simbologia visual e penetração mercadológica, ele é o resultado de um percurso intelectual derivado de conceitos cosmogônicos, filosóficos, teológicos, religiosos, fisiológicos e artísticos que foram se alterando ao longo do tempo, mas que fazem parte da essência humana em sua eterna busca existencialista por respostas sobre o lugar do Homem nesse Universo tanto físico quanto conceitual. Em suma, o desenho é mais que apenas uma imagem midiática. Esta é a segunda de duas partes.
EXPOSIÇÃO “TEMPO INSULAR” do artista plástico Walter Miranda e associado da ABCA Associação Brasileira de Críticos de Arte.
EXPOSIÇÃO “TEMPO INSULAR” do associado ABCA e artista plástico Walter Miranda.
“A Arte existe porque a vida não basta”.
Essa frase, escrita pelo poeta brasileiro Ferreira Gullar (1930-2016), nunca foi tão atual e significativa. Não importa a época, a cultura, a religião, a raça etc., o espirito humano sempre sentiu necessidade de se expressar por meio de recursos artísticos. Esse é um dos fatores que nos diferenciam das demais criações da natureza, a mãe Gaia.
O tempo do isolamento devido à Covid 19 serviu para muitos artistas criarem obras de arte. Não foi diferente comigo. Não bastava estar protegido, resguardado e bem acompanhado. Não bastava a internet para me integrar com distantes amigos, parentes, artistas ou para me manter atualizado sobre os acontecimentos no planeta. A vida não foi suficiente e a Arte brotou em vários sentidos, de várias formas, com várias desculpas, motivos e temas. Foi um tempo pra pintar porque a vida não bastou!
Foi um tempo de epidemia; um tempo de recolhimento; um tempo de dormências; um tempo de esperanças; um tempo de desesperos; um tempo de descobrimentos; um tempo de empatias; um tempo de egoísmos; um tempo de covardias; um tempo de traições; um tempo de heroísmos; um tempo de angústias; um tempo de decepções; um tempo de tristezas; um tempo de surpresas; um tempo de flores; um tempo de chorar; um tempo de rir; um tempo de amar; um tempo de odiar; um tempo de exaltações; um tempo de abominações; um tempo de uniões; um tempo de separações; um tempo de alienações; um tempo de aversões; um tempo de libertação; um tempo de salvação; um tempo de autoconhecimento; um tempo de saúde; um tempo de morrer; um tempo de reviver; um tempo de dor; um tempo de paz; um tempo de plantar; um tempo de colher; um tempo de afastamento; um tempo de integração; um tempo de refletir.
Enfim, foi um período de insulamento e as obras desse Tempo Insular são o resultado dos meus momentos vividos em uma fase da vida que, como postulou a Dra. Margareth Dalcolmo (1954) em seu recente livro, é “Um Tempo Para Não Esquecer”.
Dessa forma, a Arte me serviu como válvula de escape, de reflexão, de encontro e de introspecção, em vários dos momentos que mencionei e que me propiciaram a criação de algumas obras pungentes outras poéticas; algumas críticas outras exultantes; algumas exaltando a vida outras questionando a falta de empatia; algumas mostrando o lado belo do ser humano outras despertando um certo descrédito na humanidade. Esses meus momentos de inflexão me conduziram ao sabor de cada situação sem que eu oferecesse resistência. O resultado são as obras que compõem essa exposição denominada “Tempo Insular”.
Embora a preocupação inicial maior fosse com os idosos, havia também a preocupação do sistema médico mundial em proteger as gestantes e seus filhos. Isso me inspirou a criar alguns trabalhos referentes à gravidez e eles passaram a fazer parte da recorrente série denominada Exaltação a Gaia que venho desenvolvendo essa série desde a década de 1990. Ela faz uma correlação com a vida planetária ao associar a mãe Terra e a maternidade humana. Os quadros dessa série exaltam a importância do planeta Terra, uma célula universal que abriga uma diversidade biológica imensa, mas também expõe a sua fragilidade representada pelo equilíbrio dos bailarinos que reverenciam a mãe Gaia, a deusa grega que representa a Terra e a Natureza. Ao mesmo tempo, os trabalhos fazem uma analogia com três componentes importantes do nosso sistema planetário: Terra, Lua e Sol como elementos geradores de vida na forma como conhecemos e das condições para a sua manutenção.
Dentro desse mesmo ímpeto, surgiu o trabalho denominado Chip Metafísico Universal, composto por capacitores eletrônicos e mini lâmpadas led sobre placas de circuito eletrônico pintadas por mim. Nele o planeta Terra, pintado em óleo sobre tela, está no centro como se fosse um processador eletrônico virtual e irradia linhas energéticas da mesma forma que as linhas de um chip eletrônico real conduzem energia para os demais componentes do circuito eletrônico. Assim, em termos filosóficos, o centro do universo seria aqui, da mesma forma que todo e qualquer ponto universal seria o centro desde que o observador lá esteja.
Do risco de contaminação pela doença até a insólita infecção que me assolou mesmo estando isolado há um ano, surgiu o projeto para a instalação “Covidianis Plana Terrae”. Ela consiste na distribuição de vários elementos pictóricos e objetos tridimensionais estrategicamente distribuídos em um espaço que pode ser considerado claustrofóbico. A instalação é composta da seguinte forma:
a) - Um quadro homenageia todos os funcionários da área da saúde que, para mim, foram os verdadeiros heróis ao batalhar na linha do front contra um inimigo invisível e perigoso, uma constante nessa atividade profissional principalmente durante as pandemias históricas. Esse quadro apresenta na parte superior um painel tridimensional (pintado com a técnica da pintura a óleo) mostrando um médico da Idade Média e médicos e enfermeiros contemporâneos usando roupas e equipamentos de proteção. Ao lado deles há duas faixas com elementos eletrônicos retirados de computadores e que representam o coronavírus. No centro do quadro estão as silhuetas de três bailarinos (pintadas com camadas de tinta a óleo espirradas) representando a humanidade em momentos de reconhecimento e de medo, bem como a representação esquemática e figurativa do corona vírus, além de dois componentes eletrônicos retirados de partes internas de computadores também representando os vírus. Na parte inferior do quadro há um monitor de PC com imagens da gripe espanhola em 1918, da atual pandemia e a imagem de um médico da Idade Média. Ao lado do monitor, estão duas representações da Yersinia pestis (bactéria causadora da peste bubônica) e do vírus da gripe espanhola. Também ao lado do monitor há duas placas de computadores (serradas e esmerilhadas) contendo a época da peste bubônica e da gripe espanhola. Das placas saem dois cabos elétricos em direção às imagens da bactéria e do vírus.
b) - Ainda dentro da instalação, um trabalho denominado Fábrica de Caixões contém um moedor industrial de carne que tritura o planeta e o devolve moído em fileiras de mini caixões representados por chips eletrônicos sendo que centenas de mini botões eletrônicos representam as vítimas fatais da pandeira.
c) - Mais abaixo, representações tridimensionais do coronavírus flutuam sobre pequenos caixões de madeira, sendo que dois deles apresentam a inscrição “eu/você?”.
d) - Quatro quadros denominados Corona Mundi foram criados utilizando diversos refugos e componentes eletrônicos sendo que a silhueta pintada dos continentes representa o vírus se espalhando pelo planeta.
e) - Dois trabalhos tridimensionais representam na frente e no verso duas faces do planeta, como se ele fosse plano, e se contrapõem a uma terceira obra composta por uma esfera pintada com os continentes em sua real posição. A questão da esfericidade do planeta ou sua suposta planicidade gerou esses três trabalhos que foram incorporados à instalação para representar o forte ressurgimento na cultura mundial da antiga teoria da Terra plana. Minha intenção foi questionar esses ultrapassados valores culturais, pois a meu ver, esse tipo de pensamento teórico baseado em conceitos medievais e arcaicos traz em seu bojo vários outros conceitos retrógrados referentes à ciência, religião, saúde etc. e reforçam um negacionismo frente à seriedade daqueles tempos insulares vividos por todos nós. Abaixo da esfera que representa o planeta em sua forma verídica estão várias seringas sem agulhas para aludir à falta de medicamentos para tratar os efeitos da pandemia.
f) - Dois quadros denominados Cloroquina, o Pão Nosso de Cada Dia? 1 e 2 apresentam o planeta Terra rodeado por semiesferas feitas de papel artesanal, que eu produzi, e incrustadas de transistores que representam o coronavírus. Alguns comprimidos de papel artesanal, também feitos por mim, representam comprimidos de cloroquina e centenas de mini botões eletrônicos interruptores táteis representam uma multidão de pessoas que rodeiam o comprimido em busca de uma pretensa proteção.
g) - A instalação está infestada com várias representações bi e tridimensionais do coronavírus espalhadas pelo ambiente tanto nas paredes quanto flutuando no ar e causando a impressão de que podemos ser atingidos pelos vírus.
h) - Centenas de equipos hospitalares estão espalhados pelas paredes e envolvem os observadores que ocupam o espaço causando a sensação de ambiente hospitalar onipresente. Além disso, para adentrar ao espaço da instalação, os espectadores passam por uma cortina feita também com equipos hospitalares e que cria uma atmosfera separada dos demais ambientes da exposição em uma zona isolada e insular.
Ao longo da minha produção artística, determinados temas filosóficos sempre são recorrentes e com a pandemia da covid-19 não poderia ser diferente. Na década de 1990, eu criei uma série de trabalhos denominada Admirável Nova Idade Média. O termo Admirável é derivado de outra série de quadros pintados anteriormente por mim, influenciado pelo livro Admirável Mundo Novo do escritor Aldoux Huxley. A série foi criada depois de analisar as atitudes humanas da época e procurar entender melhor sua trajetória temporal por meio de estudos históricos. Percebi então um forte paralelo na história: a Idade Média. Todo o sentido de violência, insegurança; solidão; desespero social; riscos de epidemias; controle religioso; relações profissionais; deslocamento espacial; dependência do governo; injustiças sociais; angústias pessoais etc., que ocorriam naquela década tinham a meu ver, certa similaridade com o período histórico do passado. Assim, achei interessante provocar no espectador reflexões sobre o presente e o futuro usando as experiências do passado em uma abordagem análoga ao cíclico espaço tempo continuum, embora eu acredite que o tempo não deva ser representado exatamente por um círculo e sim mas por uma espiral (muito mais dinâmica, como é a vida), que tem algumas características aparentemente cíclicas, porque nasce em um ponto e cresce continuamente passando sempre pelos mesmos quadrantes que provocam certas similaridades, porém sem se repetir. Na época em que pintei os trabalhos dessa série, o risco de graves epidemias já era uma preocupação para algumas autoridades sanitárias mundiais, devido às facilidades com que os vírus e bactérias podem ser transmitidos. Isto tem gerado as mesmas preocupações que havia na Idade Média com as pestes, agora concretizadas com a atual pandemia da covid-19. Na verdade, o insulamento reforçou ainda mais a sensação de que ainda estamos revivendo esse paralelo histórico e, por isso, resolvi incorporar na exposição Tempo Insular o trabalho relativo à questão da saúde. Para tanto atualizei alguns elementos do trabalho denominado Admirável Nova Idade Média - Novo Corona 1.9 e incorporei novos elementos eletrônicos e imagéticos que se referem ao momento atual nesse início de século.
Outra situação que gerou trabalhos durante o período de isolamento foi a dicotomia entre os que acreditavam no risco provocado pela pandemia e os que negavam a seriedade da situação. Assim, surgiu a série de quadros denominada Está nos Olhos de Quem Vê - Olhar Pandêmico 1, 2 e 3 e o quadro Torre de Babel-2. Os três primeiros abordam a evolução da pandemia pelo mundo afora por meio da representação pictórica de olhos verdes, castanhos e azuis e da inclusão de elementos eletrônicos característicos da tecnologia atual que geram uma imagem estilizada do vírus. A torre de Babel aborda a polarização entre os negacionistas e os defensores da ciência a respeito da pandemia da covid-19.
A análise sobre esses contrapontos filosóficos me conduziu a uma reflexão sobre a condição humana ao longo das eras e culminou na criação da série de trabalhos denominada Evolução Pari passu em que quatro trabalhos representam a evolução do nosso domínio tecnológico (durante a Pré-história, Antiguidade, Idade Moderna e Idade Contemporânea), comparada com a movimentação dos continentes ao longo dos milhões de anos. O primeiro quadro representa o início do percurso humano sobre o planeta por meio de pegadas deixadas durante a fase coletora; pinturas rupestres que se referem à fase de caçador; a observação da natureza por meio da observação da forma geométrica elíptica e a concepção primal da existência do Sol e da Lua como parte de seu habitat. Os continentes estão unidos em um supercontinente conhecido como Pangeia. O segundo quadro representa a ocupação espacial do planeta; a invenção da escrita; o aprendizado da matemática; a associação de fenômenos da natureza com superstições e posterior entendimento lógico deles; o domínio de técnicas agrícolas, arquitetônicas e materiais; o início do domínio da eletrônica. Os continentes estão um pouco afastados entre si. O terceiro quadro representa o momento atual em que a humanidade se encontra sendo que o domínio tecnológico se correlaciona com o risco de hecatombes ambientais e atômicas. Os continentes são apresentados na posição atual. O quarto quadro representa um futuro distante em que os continentes estarão unidos novamente em um hipotético supercontinente denominado Novopangeia, Neo Pangeia, Pangeia Próxima ou ainda Pangeia Ùltima, sendo que a maioria dos registros da nossa civilização estará apagada, permanecendo poucas pistas da presença humana representadas pelas silhuetas dos pés e de uma mão.
Outro trabalho, denominado Evoluções Paralelas, também apresenta correlação com a evolução humana, porém agora comparada com a absorção de conhecimentos ao longo do tempo. Assim, a primeira fase é representada pela percepção dos elementos astronômicos, tais como, o Sol, a Lua e as estrelas, pela subsistência por meio da caça e coleta indo até o domínio do fogo. A segunda fase é representada pela invenção da roda, da escrita, da matemática e de esquemas teóricos explicativos do mundo e do universo. A terceira fase é representada pela maçã Newtoniana, sua equação matemática gravitacional e pela notória equação matemática de Einstein. A quarta fase se refere ao momento atual em que a humanidade se encontra sob o risco de autodestruição, representado pela imagem de um cogumelo atômico e por alguns elementos tecnológicos, sendo um deles, de forma circular, que faz correlação com a Atlântida, cidade mencionada por Platão, também vítima de uma hecatombe.
O período de insulamento também me fez pensar sobre a condição humana e refletir sobre a questão da nossa influência no planeta. Por isso, criei mais quatro trabalhos específicos sobre a situação ambiental e ecológica que está criando uma armadilha tecnológica para a humanidade. Assim, nasceram os trabalhos denominados Ratoeira Tecnológica 2, Pendular, e Clausura Tecnológica 1 e 2. Neles o planeta é colocado como refém das consequências ambientais criadas pelo ser humano sendo que a intenção desses trabalhos é instigar questões filosóficas sobre o risco de uma global hecatombe ecológica provocada pela humanidade ao fazer uso descontrolado da tecnologia criada após a revolução industrial.
Entretanto, o tempo de clausura não foi apenas um tempo de tristes reflexões, houve também momentos em que a natureza, por exemplo, gerou o ímpeto de representar algumas belas tardes coroadas pelo por do sol e, assim como na série Skyline, iniciada a partir de 2017 inspirada nas cores de Velazques e Turner e posteriormente nas geometrias Mondrianas, usei diversas placas de computadores, celulares, aparelhos eletrônicos etc. contrapostas a um fundo quadricular pintado com várias camadas de tinta espirrada, cujo efeito visual se refere ao por do sol. As placas representam os prédios das cidades e a geometria do céu está baseada no uso que faço de divisões geométricas que compõem os meus quadros e por isso resolvi denominar a série de Por do Sol Walteriano. Além disso, a divisão geométrica do céu faz referência direta aos pixels cromáticos de imagens eletrônicas quando ampliadas ao máximo. Assim sendo, os trabalhos dessa série apresentam uma correlação visual e metonímica entre as placas, a geometrização do céu e a interpretação dos observadores.
Outro trabalho denominado Espaço-tempo Virótico foi composto por várias placas eletrônicas antigas, recortadas por mim para se justaporem, que tiveram um por de sol urbano pintado sobre elas. Embora pintadas em dégradé, as faixas da atmosfera que escurecem ao se aproximar do espaço foram pintadas respeitando a forma geométrica das placas. Sobre essas placas antigas foram colocadas placas eletrônicas atuais recortadas em forma circular, sendo que na borda delas foram aplicados componentes eletrônicos que representam as espículas do novo coronavírus. A forma dessas placas em si é o coronavírus tomando conta do planeta, pois no interior delas, os continentes foram pintados em forma positiva e negativa. Ainda dentro das placas cortadas na forma circular foram aplicados números que nos remetem às horas do dia e insinuam o tempo em que vivemos, porém sem determinismo porque não existem os ponteiros desse relógio imaginário. Em resumo, a correlação entre o espaço e o tempo ocorre devido às sugestões imagéticas da forma virótica e da noção temporal induzida pelos números de um relógio invisível.
Durante a pandemia, assistimos a questão do racismo mundial ganhar visibilidade por meio de publicações nas mídias sociais e pela violência policial. Diante das manifestações populares denominadas Vidas Negras Importam que protestaram contra o racismo, algumas pessoas se sentiram incomodadas com essa frase e perguntaram: Por que dizer isso já que todas as vidas importam? Essa questão gerou o trabalho denominado “Vidas Negras Importam”, pois a meu ver, embora todas as vidas sejam importantes, as vidas de pessoas negras têm sido menosprezadas pelos sistemas sociais e econômicos em que as pessoas de pele escura sempre tiveram que lutar para ter os mesmos direitos das pessoas de pele clara. Só isso já bastaria pra dizer que vidas negras importam. Se não fosse assim, por que lutamos para conquistar liberdade ao viver sob ditaduras? Se não fosse assim, por que lutamos por direitos sociais justos? Se não fosse assim, por que as mulheres lutam por direitos iguais? Se não fosse assim, porque a comunidade LGBT luta por direitos iguais? Se não fosse assim, por que lutamos contra as injustiças que nos são impostas? Dessa forma, senti a necessidade de me expressar por meio de uma obra cujo título faz uso e reforça a importância da frase “Vidas Negras Importam”.
Falta mencionar dois trabalhos que criei durante a pandemia, cujos estudos já estavam prontos há algum tempo, mas eu não havia conseguido encontrar o tempo necessário para finalizá-los. Assim, nada como a paralização das tarefas prosaicas provocadas pelo insulamento para que eles pudessem se concretizar. Nesta série que denominei Dicotomias Humanas concretizei uma proposta pictórica e filosófica em que abordo o potencial humano para fazer coisas belas ou destrutivas dependendo do ímpeto filosófico, social, financeiro, religioso etc. Usei três exemplos recentes que me instigaram para pintar dois quadros que representam a capacidade de superação e de descaso humano. O primeiro trabalho apresenta o notório resgate dos mineiros chilenos. O segundo trabalho aborda as consequências dos dois desastres ecológicos provocados em Mariana e Brumadinho, no espaço de quatro anos, pelo desleixo de uma única empresa. O contraponto entre esses dois trabalhos está no fato de que, quando o ser humano quer, ele se dedica a algo construtivo e heroico, como foi no caso do Chile. Porém, o usual é o descaso, a falta de planejamento e de respeito para com a vida humana e animal, bem como com a flora e o ambiente ecológico, como ocorreu no caso das duas cidades mineiras. Em outras palavras, esses dois trabalhos ganharam sentido de atualidade porque apresentam exemplos diferentes da dicotomia humana quando penso que durante a pandemia convivemos com heroísmos absolutos, por um lado, e com descasos e desrespeito à vida, por outro. Ambos deixaram como herança momentos de júbilo e mazelas indeléveis.
Por fim, o suporte para todos os trabalhos incluídos nessa exposição variou da tradicional tela, passando pela madeira, objetos tridimensionais feitos com papel artesanal fabricado por mim e, até mesmo, placas de circuito impresso para computadores e aparelhos eletrônicos diversos.
Os materiais usados incluíram moedores de carne; placas de computador; chips eletrônicos integrados; mini botões eletrônicos interruptores táteis; mini lâmpadas led; capacitores; resistores; diversos componentes eletrônicos; lentes fotográficas e de scanner; placas de computador; placas de circuito impresso sem componentes integrados; hds abertos; bureta; toquinhos de madeira; lentes de óculos; cúpulas de vidro e acrílico; placas de acrílico; placas de circuito para pen drive; cabos paralelos; suporte para espelho; imagens digitalizadas etc. Algumas das placas foram serradas e esmerilhadas para obter diversas formas, inclusive figurativas, ou foram escolhidas devido à suas formas geométricas, mas todas tiveram suas cores estudadas para contrapor ao fundo pintado por mim complementando-o visualmente.
Ao todo, durante o período de isolamento, foram criadas 67 obras, sendo 63 delas apresentadas nessa exposição como resultado do meu insulamento que acredito ter deixado uma mensagem positiva e a sensação de um tempo bem aproveitado.
Walter Miranda - Dezembro/2022.
Walter Miranda é membro da ABCA Associação Brasileira de Críticos de Arte, Seção São Paulo.
É artista plástico desde 1976, com participação em mais de cem exposições no Brasil e no exterior, tendo recebido 21 prêmios em salões de arte. É professor de história da arte e técnicas artísticas desde 1986 e lecionou no Liceu de Artes e Ofícios. Membro de júri de salões de arte desde 1987 e ministra palestras e workshops em universidades, museus e instituições culturais desde 1983. Curador de várias exposições e coordenador da área de artes visuais do "Mapa Cultural Paulista" (2015/16) da Secretaria de Estado da Cultura e coordenador técnico do projeto "Oficina de Esculturas" na cidade de Rio Grande/RS (2013). Foi presidente da APAP Associação Profissional de Artistas Plásticos de São Paulo (2013 a 2018)
Website: https://www.fwmartes.com.br
Serviço:
A exposição Tempo Insular ocorreu entre os dias 3 de novembro e 3 de dezembro de 2022.
O artista participou de três encontros com o público além do Vernissage e Finissage.
Local: Mahavidya Cultural
Endereço: Rua Dona Leopoldina, 239 - Ipiranga - São Paulo - SP
Tags: Gaia, Pandemia, Covid, Terra, Sustentabilidade, Artes Plásticas, Exposição.
O HOMEM VITRUVIANO - Relatos de uma ideia cosmogônica (primeira parte -1/2)
Resumo: Um resumo da história do desenho denominado “Homem Vitruviano” feito por Leonardo da Vinci. Inserido no inconsciente coletivo ocidental e contemporâneo devido à sua simbologia visual e penetração mercadológica, ele é o resultado de um percurso intelectual derivado de conceitos cosmogônicos, filosóficos, teológicos, religiosos, fisiológicos e artísticos que foram se alterando ao longo do tempo, mas que fazem parte da essência humana em sua eterna busca existencialista por respostas sobre seu lugar nesse universo tanto físico quanto conceitual. Em suma, o desenho é mais que apenas uma imagem midiática. Esta é a primeira de duas partes.
Catálogo Tempo Insular
TEMPO INSULAR
https://abca.art.br/wp-content/uploads/2022/12/Arte-Critica-ed-63-Walter-Miranda-Tempo-insular-sob-a-luz-da-arte.pdf
“A Arte existe porque a vida não basta”.
Essa frase, escrita pelo poeta brasileiro Ferreira Gullar (1930-2016), nunca foi tão atual e significativa. Não importa a época, a cultura, a religião, a raça etc., o espirito humano sempre sentiu necessidade de se expressar por meio de recursos artísticos. Esse é um dos fatores que nos diferencia das demais criações da Natureza, a mãe Gaia.
O tempo do isolamento devido à covid-19 serviu para muitos artistas criarem obras de arte. Não foi diferente comigo. Não bastava estar protegido, resguardado e bem acompanhado. Não bastava a internet para me integrar com distantes amigos, parentes, artistas ou para me manter atualizado sobre os acontecimentos no planeta. A vida não foi suficiente e a Arte brotou em vários sentidos, de várias formas, com várias desculpas, motivos e temas. Foi um tempo pra pintar porque a vida não bastou!
Foi um tempo de epidemia; um tempo de recolhimento; um tempo de dormências; um tempo de esperanças; um tempo de desesperos; um tempo de descobrimentos; um tempo de empatias; um tempo de egoísmos; um tempo de covardias; um tempo de traições; um tempo de heroísmos; um tempo de angústias; um tempo de decepções; um tempo de tristezas; um tempo de surpresas; um tempo de flores; um tempo de chorar; um tempo de rir; um tempo de amar; um tempo de odiar; um tempo de exaltações; um tempo de abominações; um tempo de uniões; um tempo de separações; um tempo de alienações; um tempo de aversões; um tempo de libertação; um tempo de salvação; um tempo de autoconhecimento; um tempo de saúde; um tempo de morrer; um tempo de reviver; um tempo de dor; um tempo de paz; um tempo de plantar; um tempo de colher; um tempo de afastamento; um tempo de integração; um tempo de refletir.
Enfim, foi um período de insulamento e as obras desse Tempo Insular são o resultado dos meus momentos vividos em uma fase da vida que, como postulou a Dra. Margareth Dalcolmo (1954) em seu recente livro, é “Um Tempo Para Não Esquecer”.
Dessa forma, a Arte me serviu como válvula de escape, de reflexão, de encontro e de introspecção, em vários dos momentos que mencionei e que me propiciaram a criação de algumas obras pungentes outras poéticas; algumas críticas outras exultantes; algumas exaltando a vida outras questionando a falta de empatia; algumas mostrando o lado belo do ser humano outras despertando um certo descrédito na humanidade. Esses meus momentos de inflexão me conduziram ao sabor de cada situação sem que eu oferecesse resistência. O resultado são as obras que compõem essa exposição denominada Tempo Insular.
Embora a preocupação inicial maior fosse com os idosos, havia também a preocupação do sistema médico mundial em proteger as gestantes e seus filhos. Isso me inspirou a criar alguns trabalhos referentes à gravidez e eles passaram a fazer parte da recorrente série denominada Exaltação a Gaia, que venho desenvolvendo desde a década de 1990. Ela faz uma correlação com a vida planetária ao associar a mãe Terra e a maternidade humana. Os quadros dessa série exaltam a importância do planeta Terra, uma célula universal que abriga uma diversidade biológica imensa, mas também expõe a sua fragilidade representada pelo equilíbrio dos bailarinos que reverenciam a mãe Gaia, a deusa grega que representa a Terra e a Natureza. Ao mesmo tempo, os trabalhos fazem uma analogia com três componentes importantes do nosso sistema planetário: Terra, Lua e Sol como elementos geradores de vida na forma como conhecemos e das condições para a sua manutenção.
Dentro desse mesmo ímpeto, surgiu o trabalho denominado Chip Metafísico Universal, composto por capacitores eletrônicos e mini lâmpadas led sobre placas de circuito eletrônico pintadas por mim. Nele o planeta Terra, pintado em óleo sobre tela, está no centro como se fosse um processador eletrônico virtual e irradia linhas energéticas da mesma forma que as linhas de um chip eletrônico real conduzem energia para os demais componentes do circuito eletrônico. Assim, em termos filosóficos, o centro do universo seria aqui, da mesma forma que todo e qualquer ponto universal seria o centro desde que o observador lá esteja.
Do risco de contaminação pela doença até a insólita infecção que me assolou mesmo estando isolado há um ano, surgiu o projeto para a instalação Covidianis Plana Terrae. Ela consiste na utilização de vários elementos pictóricos e objetos tridimensionais estrategicamente distribuídos em um espaço, de 2 x 4m, que pode ser considerado claustrofóbico. A instalação é composta da seguinte forma:
a) Um quadro homenageia todos os funcionários da área da saúde que, para mim, foram os verdadeiros heróis ao batalhar na linha do front contra um inimigo invisível e perigoso, uma constante nessa atividade profissional principalmente durante as pandemias históricas. Esse quadro apresenta na parte superior um painel tridimensional (pintado com a técnica da pintura a óleo) mostrando um médico da Idade Média e médicos e enfermeiros contemporâneos usando roupas e equipamentos de proteção. Ao lado deles há duas faixas com elementos eletrônicos retirados de computadores que, pela similaridade de forma, representam o coronavírus. No centro do quadro estão as silhuetas de três bailarinos (pintadas com camadas de tinta a óleo espirradas) representando a humanidade em momentos de reconhecimento e de medo, bem como a representação esquemática e figurativa do coronavírus, além de dois componentes eletrônicos retirados de partes internas de computadores também representando os vírus. Na parte inferior do quadro há um monitor de PC com imagens da gripe espanhola em 1918, da atual pandemia e a imagem de um médico da Idade Média. Ao lado do monitor, estão duas representações da Yersinia pestis (bactéria causadora da peste bubônica) e do vírus da gripe espanhola. Também ao lado do monitor há duas placas de computadores (serradas e esmerilhadas por mim) contendo a suposta data da peste bubônica e da gripe espanhola. Das placas saem dois cabos elétricos em direção às imagens da bactéria e do vírus.
b) Dentro da instalação há um trabalho denominado Fábrica de Caixões que contém um moedor industrial de carne que tritura o planeta e o devolve moído em fileiras de mini caixões representados por chips eletrônicos ao lado de centenas de mini botões eletrônicos que representam as vítimas fatais da pandemia. Mais abaixo, representações tridimensionais do coronavírus flutuam sobre pequenos caixões de madeira, sendo que dois deles apresentam a inscrição “eu/você?”.
c) Quatro quadros denominados Corona Mundi foram criados utilizando diversos refugos e componentes eletrônicos sendo que a silhueta pintada dos continentes representa o vírus se espalhando pelo planeta.
d) Dois trabalhos tridimensionais representam na frente e no verso duas faces do planeta, como se ele fosse plano, e se contrapõem a uma terceira obra composta por uma esfera pintada com os continentes em sua real posição. A questão da esfericidade do planeta ou sua suposta planicidade gerou esses três trabalhos que foram incorporados à instalação para representar o forte ressurgimento na cultura mundial da antiga teoria da Terra plana. Minha intenção foi questionar esses ultrapassados valores culturais, pois a meu ver, esse tipo de pensamento teórico baseado em conceitos medievais e arcaicos traz em seu bojo vários outros conceitos retrógrados referentes à ciência, religião, saúde etc. e reforçam um negacionismo frente ao crítico tempo insular vivido por todos nós. Abaixo da esfera que representa o planeta em sua forma verídica estão 26 seringas sem agulhas que aludem à falta de medicamentos para tratar os efeitos deletérios da pandemia.
e) Dois quadros denominados Cloroquina, o Pão Nosso de Cada Dia? 1 e 2 apresentam o planeta Terra rodeado por semiesferas feitas de papel artesanal (que eu produzi) e incrustadas de transistores que representam o coronavírus. Alguns comprimidos de papel artesanal, também feitos por mim, representam comprimidos de cloroquina e centenas de mini botões eletrônicos interruptores táteis representam uma multidão de pessoas que rodeiam o comprimido em busca de uma pretensa proteção.
f) A instalação está infestada com várias representações bi e tridimensionais do coronavírus espalhadas pelo ambiente tanto nas paredes quanto flutuando no ar e causando a impressão de que podemos ser atingidos pelos vírus.
g) Centenas de equipos hospitalares estão espalhados pelas paredes e envolvem os observadores que ocupam o espaço causando a sensação de ambiente hospitalar onipresente. Além disso, para adentrar ao espaço da instalação, os espectadores passam por uma cortina feita também com equipos hospitalares e que cria uma atmosfera separada dos demais ambientes da exposição em uma zona isolada e insular.
h) Resolvi incluir outro moedor de carne à instalação Covidianis Plana Terrae para a exposição “Tempos Insulares”, pois eu acrescentei vários mini rotores de imã permanente cuja aparência têm ligeira similaridade com a imagem bidimensional do corona vírus. A função deles nesse trabalho é estabelecer uma correlação entre a tecnologia humana e a biologia molecular. Essa obra fez parte da série “Cartografias de Gaia” e representa o problema que a sociedade contemporânea está criando com o excesso de lixo não reaproveitado e jogado em todos os cantos do planeta.
Ao longo da minha produção artística, determinados temas filosóficos sempre são recorrentes e com a pandemia da covid-19 não poderia ser diferente. Na década de 1990, eu criei uma série de trabalhos denominada Admirável Nova Idade Média. O termo “Admirável” é derivado de outra série de quadros pintados anteriormente por mim, influenciado pelo livro “Admirável Mundo Novo” escrito por Aldoux Huxley. A série foi criada depois de analisar as atitudes humanas da época e procurar entender melhor sua trajetória temporal por meio de estudos históricos. Percebi então um forte paralelo na história: a Idade Média. Todo o sentido de violência, insegurança; solidão; desespero social; riscos de epidemias; controle religioso; relações profissionais; deslocamento espacial; dependência do governo; injustiças sociais; angústias pessoais etc., que ocorriam naquela década tinham, a meu ver, certa similaridade com o período histórico do passado. Assim, achei interessante provocar no espectador reflexões sobre o presente e o futuro usando as experiências do passado em uma abordagem análoga ao cíclico espaço tempo continuum, embora eu acredite que o tempo não deva ser representado exatamente por um círculo e sim por uma espiral (muito mais dinâmica, como é a vida), que tem algumas características aparentemente cíclicas, porque nasce em um ponto e cresce continuamente passando sempre pelos mesmos quadrantes que provocam certas similaridades, porém sem se repetir. Na época em que pintei os trabalhos dessa série, o risco de graves epidemias já era uma preocupação para algumas autoridades sanitárias mundiais, devido às facilidades com que os vírus e bactérias podem ser disseminados. Isto tem gerado o mesmo risco que havia na Idade Média com as pestes, agora concretizado com a atual pandemia da covid-19. Na verdade, o insulamento reforçou ainda mais a sensação de que ainda estamos revivendo esse paralelo histórico e, por isso, resolvi incorporar na exposição Tempo Insular o trabalho relativo à questão da saúde. Para tanto, atualizei alguns elementos do trabalho denominado Admirável Nova Idade Média - Novo Corona 1.9 e incorporei novos elementos eletrônicos e imagéticos que se referem ao momento atual nesse início de século.
Outra situação que gerou trabalhos durante o período de isolamento foi a dicotomia entre os que acreditavam no risco provocado pela pandemia e os que negavam a seriedade da situação. Assim, surgiu a série de quadros denominada Está nos Olhos de Quem Vê - Olhar Pandêmico 1, 2 e 3 e o quadro Torre de Babel-2. Os três primeiros abordam a evolução da pandemia pelo mundo afora por meio da representação pictórica de olhos verdes, castanhos e azuis e da inclusão de elementos eletrônicos característicos da tecnologia atual que geram uma imagem estilizada do vírus. A Torre de Babel-2 aborda a polarização entre os negacionistas e os defensores da ciência a respeito da pandemia da covid-19.
A análise sobre esses contrapontos filosóficos me conduziu a uma reflexão sobre a condição humana ao longo das eras e culminou na criação da série de trabalhos denominada Evolução Pari Passu em que quatro trabalhos representam a evolução do nosso domínio tecnológico (durante a Pré-história, Antiguidade, Idade Moderna e Idade Contemporânea), comparada com a movimentação dos continentes ao longo dos milhões de anos. O primeiro quadro representa o início do percurso humano sobre o planeta por meio de pegadas deixadas durante a fase coletora; pinturas rupestres que se referem à fase de caçador; a observação da natureza por meio da observação da forma geométrica elíptica e a concepção primal da existência do Sol e da Lua como parte de seu habitat. Os continentes estão unidos em um supercontinente conhecido como Pangeia. O segundo quadro representa a ocupação espacial do planeta; a invenção da escrita; o aprendizado da matemática; a associação de fenômenos da natureza com superstições e posterior entendimento lógico deles; o domínio de técnicas agrícolas, arquitetônicas e materiais; o início do domínio da eletrônica. Os continentes estão um pouco afastados entre si. O terceiro quadro representa o momento atual em que a humanidade se encontra sendo que o domínio tecnológico se correlaciona com o risco de hecatombes ambientais e atômicas. Os continentes são apresentados na posição atual. O quarto quadro representa um futuro distante em que os continentes estarão unidos novamente em um hipotético supercontinente denominado Novopangeia, Neo Pangeia, Pangeia Próxima ou ainda Pangeia Última, sendo que a maioria dos registros da nossa civilização estará apagada, permanecendo poucas pistas da presença humana representadas pelas silhuetas dos pés e de uma mão.
Outro trabalho, denominado Evoluções Paralelas, também apresenta correlação com a evolução humana, porém agora comparada com a absorção de conhecimentos ao longo do tempo. Assim, a primeira fase é representada pela percepção dos elementos astronômicos, tais como, o Sol, a Lua e as estrelas, pela subsistência por meio da caça e coleta indo até o domínio do fogo. A segunda fase é representada pela invenção da roda, da escrita, da matemática e de esquemas teóricos explicativos do mundo e do universo. A terceira fase é representada pela maçã Newtoniana, sua equação matemática gravitacional e pela notória equação matemática de Einstein. A quarta fase se refere ao momento atual em que a humanidade se encontra sob o risco de autodestruição, representado pela imagem de um cogumelo atômico e por alguns elementos tecnológicos, sendo que um deles, de forma circular, faz correlação com a Atlântida, cidade mencionada por Platão e destruída por um cataclismo natural.
O período de insulamento também me fez pensar sobre a condição humana e refletir sobre a questão da nossa influência no planeta. Por isso, criei mais quatro trabalhos específicos sobre a situação ambiental e ecológica que está criando uma armadilha tecnológica para a humanidade. Assim, nasceram os trabalhos denominados Ratoeira Tecnológica 2, Pendular, e Clausura Tecnológica 1 e 2. Neles o planeta é colocado como refém das consequências ambientais criadas pelo ser humano sendo que a intenção desses trabalhos é instigar questões filosóficas sobre o risco de uma calamidade ecológica global provocada pela humanidade ao fazer uso descontrolado da tecnologia criada após a revolução industrial.
Entretanto, o tempo de clausura não foi apenas um tempo de tristes reflexões, houve também momentos em que a natureza, por exemplo, gerou o ímpeto de representar algumas belas tardes coroadas pelo por do sol e, assim como na série Skyline, iniciada a partir de 2017 inspirada nas cores de Velazques e Turner e posteriormente nas geometrias Mondrianas, usei diversas placas de computadores, celulares, aparelhos eletrônicos etc. contrapostas a um fundo quadricular pintado com várias camadas de tinta espirrada, cujo efeito visual se refere ao por do sol. As placas representam os prédios das cidades e a geometria do céu está baseada no uso que faço de divisões geométricas que compõem os meus quadros e por isso resolvi denominar a série de Por do Sol Walteriano. Além disso, a divisão geométrica do céu faz referência direta aos pixels cromáticos de imagens eletrônicas quando ampliadas ao máximo. Assim sendo, os trabalhos dessa série apresentam uma correlação visual e metonímica entre as placas, a geometrização do céu e a interpretação dos observadores.
Outro trabalho denominado Espaço-tempo Virótico foi composto por várias placas eletrônicas antigas, recortadas e justapostas por mim e que tiveram um por de sol urbano pintado sobre elas. Embora pintadas em dégradé, as faixas da atmosfera que escurecem ao se aproximar do espaço foram pintadas respeitando a forma geométrica das placas. Sobre essas placas antigas foram colocadas placas eletrônicas atuais recortadas em forma circular e na borda delas foram aplicados componentes eletrônicos que representam as espículas do novo coronavírus. Assim, essas placas redondas se correlacionam visualmente com o coronavírus se apoderando do planeta, pois no interior delas, os continentes foram pintados em forma positiva e negativa. Ainda dentro das placas cortadas na forma circular foram aplicados números que nos remetem às horas do dia e insinuam o tempo em que vivemos, porém sem determinismo porque não existem os ponteiros desse relógio imaginário. Em resumo, a correlação entre o espaço e o tempo ocorre devido às sugestões imagéticas da forma virótica e da noção temporal induzida pelos números de um relógio invisível.
Durante a pandemia, assistimos a questão do racismo mundial ganhar visibilidade por meio de publicações na imprensa e nas mídias sociais sobre a violência policial. Diante das manifestações populares denominadas “Vidas Negras Importam” que protestaram contra o racismo, algumas pessoas se sentiram incomodadas com essa frase e perguntaram: Por que dizer isso já que todas as vidas importam? Essa questão gerou o trabalho denominado Vidas Negras Importam, pois a meu ver, embora todas as vidas sejam importantes, as vidas de pessoas negras têm sido menosprezadas pelos sistemas sociais e econômicos em que as pessoas de pele escura sempre tiveram que lutar para ter os mesmos direitos das pessoas de pele clara. Só isso já bastaria pra dizer que vidas negras importam. Se não fosse assim, por que lutamos para conquistar liberdade ao viver sob ditaduras? Se não fosse assim, por que lutamos por direitos sociais justos? Se não fosse assim, por que as mulheres lutam por direitos iguais? Se não fosse assim, porque a comunidade LGBT luta por direitos iguais? Se não fosse assim, por que lutamos contra as injustiças que nos são impostas? Dessa forma, senti a necessidade de me expressar por meio de uma obra cujo título faz uso e reforça a importância da frase “Vidas Negras Importam”.
Falta mencionar dois trabalhos que criei durante a pandemia, cujos estudos já estavam prontos há algum tempo, mas eu não havia encontrado o tempo necessário para finalizá-los. Assim, nada como a paralização das tarefas prosaicas provocadas pelo insulamento para que eles pudessem se concretizar. Nesta série que denominei Dicotomias Humanas concretizei uma proposta pictórica e filosófica em que abordo o potencial humano para fazer coisas belas ou destrutivas dependendo do ímpeto filosófico, social, financeiro, religioso etc. Usei três exemplos recentes que me instigaram para pintar dois quadros que representam a capacidade de superação e de descaso humano. O primeiro trabalho apresenta o notório resgate dos mineiros chilenos. O segundo trabalho aborda as consequências dos dois desastres ecológicos provocados em Mariana e Brumadinho, no espaço de quatro anos, pelo desleixo de uma única empresa. O contraponto entre esses dois trabalhos está no fato de que, quando o ser humano quer, ele se dedica a algo construtivo e heroico, como foi no caso do Chile. Porém, o usual é o descaso, a falta de planejamento e de respeito para com a vida humana, animal, vegetal e para com o ambiente ecológico, como ocorreu no caso das duas cidades mineiras. Em outras palavras, esses dois trabalhos ganharam sentido de atualidade porque apresentam exemplos diferentes da dicotomia humana quando penso que durante a pandemia convivemos com heroísmos absolutos, por um lado, e com descasos e desrespeito à vida, por outro. Ambos deixaram como herança momentos de júbilo e mazelas indeléveis.
Por fim, o suporte para todos os trabalhos incluídos nessa exposição variou da tradicional tela, passando pela madeira, objetos tridimensionais feitos com papel artesanal fabricado por mim e, até mesmo, placas de circuito impresso para computadores e aparelhos eletrônicos diversos.
Os materiais usados incluíram moedores de carne; placas de computador; chips eletrônicos integrados; mini botões eletrônicos interruptores táteis; mini lâmpadas led; capacitores; resistores; diversos componentes eletrônicos; lentes fotográficas e de scanner; placas de computador; placas de circuito impresso sem componentes integrados; hds abertos; bureta; toquinhos de madeira; lentes de óculos; cúpulas de vidro e acrílico; placas de acrílico; placas de circuito para pen drive; cabos paralelos; suporte para espelho; imagens digitalizadas etc. Algumas das placas foram serradas e esmerilhadas para obter diversas formas, inclusive figurativas, ou foram escolhidas devido à suas formas geométricas, mas todas tiveram suas cores estudadas para contrapor ao fundo pintado por mim complementando-o visualmente.
Quanto à técnica artística, procurei criar obras que valorizem o desenho, a forma, a composição e a cor, porém, transmitindo a minha expressão pessoal devido à combinação desses conceitos técnicos com o uso de elementos tecnológicos alheios ao universo da pintura tradicional. Assim, usei a pintura a óleo para criar texturas e efeitos visuais peculiares por meio de sobreposições de cores em camadas de tinta espirrada ou enrugada e pinceladas expressionistas ou abstratas que foram aplicadas tanto ao fundo quanto às silhuetas de figuras em alto relevo que, desenhadas em estilo realista sobre papelão, foram recortadas e coladas nos trabalhos. A incorporação de elementos bidimensionais e tridimensionais gerou planos geométricos pictóricos e visuais, pois cada um deles está a uma distância diferente do espectador. Isso me propiciou o desafio de criar relações e correspondências entre os elementos de cada quadro para obter uma expressão plástica em que a estrutura da composição trabalhasse a favor do conceito que eu queria expressar. A conjunção de silhuetas humanas com elementos pictóricos, além de elementos produzidos pela tecnologia e pela natureza, convidam o espectador a percorrer com os olhos, e até mesmo com o tato, a superfície de cada obra, instigando nele avaliações filosóficas e pragmáticas sobre a questão do meio ambiente e do homem no planeta.
Dessa forma, ao usar a tradicional técnica da pintura a óleo com a incorporação de novos elementos materiais, procurei colocar em foco o uso de novos procedimentos artísticos e conceituais referentes à técnica e objetivos da Arte Contemporânea.
Acredito que esses fatores geram afinidades simbólicas e se valorizam mutuamente em trabalhos que tentam resgatar o “prazer de se ler uma obra de arte”. Espero que, a cada nova observação, meu trabalho possa revelar novos detalhes para que o espectador faça várias leituras da minha Arte.
Ao todo, durante o período de isolamento, foram criadas 67 obras, sendo 63 delas apresentadas nessa exposição como resultado do meu insulamento que acredito ter deixado uma mensagem positiva e a sensação de um tempo bem aproveitado.
Walter Miranda Dezembro/2022
Da série “Está nos olhos de quem vê - Olhar pandêmico - 1, 2 e 3
Título: Da série “Está nos olhos de quem vê - Olhar pandêmico - 1, 2 e 3
Técnica: Óleo sobre madeira + mini botões eletrônicos interruptores táteis e mini lâmpadas led.
Diâmetro: 67 cmAno: 2021
A série de três obras denominada “Está nos olhos de quem vê” aborda a evolução da pandemia Covid-19 pelo mundo afora por meio da representação de olhos verdes, castanhos e azuis e da inclusão de elementos eletrônicos característicos da tecnologia atual.
Evolução Pari Passu
Uma análise pessoal sobre várias questões filosóficas me conduziram a uma reflexão sobre a condição humana ao longo das eras e culminou na criação da série de trabalhos denominada Evolução Pari Passu em que quatro trabalhos representam a evolução do nosso domínio tecnológico (durante a Pré-história, Antiguidade, Idade Moderna e Idade Contemporânea), comparada com a movimentação dos continentes ao longo dos milhões de anos.
O primeiro quadro representa o início do percurso humano sobre o planeta por meio de pegadas deixadas durante a fase coletora; pinturas rupestres que se referem à fase de caçador; a observação da natureza por meio da observação da forma geométrica elíptica e a concepção primal da existência do Sol e da Lua como parte de seu habitat. Os continentes estão unidos em um supercontinente conhecido como Pangeia.
O segundo quadro representa a ocupação espacial do planeta; a invenção da escrita; o aprendizado da matemática; a associação de fenômenos da natureza com superstições e posterior entendimento lógico deles; o domínio de técnicas agrícolas, arquitetônicas e materiais; o início do domínio da eletrônica. Os continentes estão um pouco afastados entre si.
O terceiro quadro representa o momento atual em que a humanidade se encontra sendo que o domínio tecnológico se correlaciona com o risco de hecatombes ambientais e atômicas. Os continentes são apresentados na posição atual.
O quarto quadro representa um futuro distante em que os continentes estarão unidos novamente em um hipotético supercontinente denominado Novopangeia, Neo Pangeia, Pangeia Próxima ou ainda Pangeia Última, sendo que a maioria dos registros da nossa civilização estará apagada, permanecendo poucas pistas da presença humana representadas pelas silhuetas dos pés e de uma mão.
A Terra é Esférica
A série “A Terra é Esférica” é composta de três trabalhos que fizeram parte da instalação Covidianis Plana Terrae, sendo que dois trabalhos tridimensionais representam na frente e no verso duas faces do planeta, como se ele fosse plano, e se contrapõem a uma terceira obra composta por uma esfera pintada com os continentes em sua real posição.
A questão da esfericidade do planeta ou sua suposta planicidade gerou esses três trabalhos que foram incorporados à instalação para representar o forte ressurgimento na cultura mundial da antiga teoria da Terra plana. Minha intenção foi questionar esses ultrapassados valores culturais, pois a meu ver, esse tipo de pensamento teórico baseado em conceitos medievais e arcaicos traz em seu bojo vários outros conceitos retrógrados referentes à ciência, religião, saúde etc. e reforçaram um forte negacionismo científico durante o período da pandemia da covid-19.
CRISTINE DE PIZAN – A PRIMEIRA ESCRITORA FEMINISTA
CRISTINE DE PIZAN – A PRIMEIRA ESCRITORA FEMINISTA
Cristine de Pizan é a primeira escritora e poeta e que viveu comercialmente de seu trabalho, influenciou gerações de filósofos e plantou a semente da luta contra o machismo nas esferas intelectuais europeias.
Link: https://abca.art.br/wp-content/uploads/2023/11/Arte-Critica-ed-59-Walter-Miranda.pdf
Walter Miranda – ABCA/São Paulo
Em minhas pesquisas sobre a atuação das mulheres ao longo da história do desenvolvimento do pensamento humano, encontrei diversas mulheres fantásticas e excepcionais. Já escrevi sobre algumas delas desde a Antiguidade até a Idade Média[1]. Entretanto, uma se destacou por ser uma escritora que viveu do fruto de seu trabalho e que deixava claro que as mulheres são tão capazes e inteligentes quanto os homens. Italiana, da cidade de Veneza, Cristine nasceu em 1364. Seu pai, Tommaso di Bevenuto da Pizzano, lecionava na Universidade de Bolonha quando foi convidado, em 1369, para ser astrólogo e médico do rei francês Carlos V. Assim, ela mudou com a família para Paris e passou o resto de sua vida na França. Sua formação intelectual foi obtida por meio dos ensinamentos de seu pai, pelo compartilhamento da educação humanista dada às princesas e pelo acesso a toda a biblioteca real composta por mais de 900 exemplares.
Com quinze anos de idade, casou-se com Etienne de Castel, um nobre e conselheiro do rei francês, que também incentivava Cristine a aprofundar seus estudos. Foi um casamento feliz. Com a morte de Carlos V em 1380, Tommaso perdeu prestigio na corte e viu seus salários reduzidos drasticamente, adoecendo logo em seguida e vindo a falecer em 1387. Em 1390, Etienne também faleceu acometido por uma epidemia enquanto acompanhava a comitiva real na cidade de Beauvais. Cristine ficou afastada da corte real, sozinha e responsável por duas filhas, um filho, sua mãe e uma sobrinha. Não bastasse essa mudança social, ela precisou enfrentar batalhas jurídicas para manter alguns bens herdados e reaver outros que lhe foram tomados por credores de seu marido. Contudo, naquela época, as viúvas pertencentes à aristocracia tinham certa liberdade que Cristine usou para decidir não casar novamente, aprofundar seus estudos e, a fim de sustentar sua família por conta própria, resolveu aplicar seus conhecimentos para escrever poemas e vendê-los para as damas da corte com as quais ainda mantinha contato. Aos poucos tornou-se conhecida como poeta virtuosa devido à qualidade literária de seus poemas[2].
Com o passar dos anos, ela ganhou tanto respeito e notoriedade que, além de escrever, passou a editar e publicar seus livros, bem como os de outros autores. Ela coordenava a tarefa dos copistas dos textos, orientava os ilustradores, controlava o número de cópias de cada manuscrito e a qualidade final deles. Como estratégia de divulgação, ela preparava pequenos resumos de prováveis obras ou fazia compilações de seus textos para presentear membros da nobreza e conseguir novas encomendas, fatores que por fim a tornaram famosa e rica ainda em vida. Como marca pessoal, assinava suas publicações com um anagrama das primeiras letras de Cristo em grego (Xpine) e Pizan, uma maneira de afrancesar seu nome e ao mesmo tempo homenagear seu pai.
Figura 1 – Assinatura de Cristine em carta para a rainha da França - British Library MS Harley 4431 - Imagem em domínio público.
Em 1394, por sugestão das noras do rei francês, Cristine escreveu a obra intitulada Le Le Livre des Cent Ballades (O Livro das Cem Baladas) que obteve ótima aceitação. Nele, ela aborda poeticamente suas experiências cotidianas e a depressão que sofreu após as mortes do pai e do marido. Em um de seus textos autobiográficos, Le Livre de l’Advision Cristine (O Livro de Conselhos de Cristine), ela relata que a deusa Philosophiae lhe consolou sobre suas vicissitudes explicando que se ela não tivesse ficado viúva, certamente continuaria apenas cuidando dos afazeres domésticos.
Figura 2 - Cristine escrevendo o Livro das cem Baladas - British Library MS Harley 4431 - Imagem em domínio público.
Na obra Le Livre de Mutation de Fortune (O Livro da Transformação da Fortuna), ela afirmou que após as mortes do pai e do marido, sua fortuna foi ter sido educada desde pequena, fato que a transformou socialmente no “equivalente a um homem”, pois ela passou a ser respeitada exercendo atividades que antes eram exclusivamente masculinas[3]. Com o passar do tempo, ela ganhou respeito social e passou a escrever textos de cunho filosófico, moral, educacional, político, militar e trivial. Sua maior preocupação era com a condição social da mulher em uma sociedade misógina. Ela afirmava que as mães tinham grande importância na educação moral e religiosa de seus filhos e, por isso, exerciam grande influência no meio social. Em 1399, ela publicou em versos a obra L’Epistre au dieu d’Amours (A Carta ao deus do Amor) em que Cupido critica o preconceito social e as maledicências contra as mulheres, um tema que Cristine abordará com recorrência e pertinácia em seus textos.
Por volta de 1400, Jean de Montreuil (1354-1418), teólogo, filósofo, chefe de estado e tradutor francês, divulgou um texto elogiando o Le Roman de la Rose (O Romance da Rosa) cuja primeira parte foi escrita por volta de 1225 por Guillaume de Lorris (c. 1200-1240) e a segunda completada entre 1265 e 1278 por Jean Clopinel de Meung (1240-c. 1305). A parte de Lorris narra de forma cortês o sonho de um poeta que observa uma flor em seu jardim, alegoricamente a vê como uma mulher e a transforma em um objeto de desejo; já a parte de Meung transforma a mulher em um mero objeto sexual com argumentos típicos do comportamento masculino e seu desprezo pelo universo feminino. O manuscrito, escrito em versos, obteve grande sucesso entre os intelectuais da época e foi caracterizado como filosófico por alguns deles devido à sua forma literária elegante e referências a autores clássicos tais como Platão, Aristóteles, Teofrasto, Cícero, Horácio, Boécio, Alain de Lille, Ovídio, Alhazen etc.[4]
Figura 3 - Roman de la Rose Bibliothèque nationale de France, ms 25526 - Imagem em domínio público.
Sentindo-se ofendida e incomodada, em fevereiro de 1401, Cristine enviou uma carta a Isabel da Baviera, rainha da França, reclamando do teor do romance. Posteriormente, ela escreveu uma carta a Jean, também aberta à comunidade literária de Paris, criticando o aspecto misógino e obceno do Romance da Rosa. Como sua carta era aberta a todos, outros intelectuais da cidade resolveram opinar a respeito da controvérsia criada por Cristine e ela passou a trocar cartas também com os irmãos Gontier Col (c. 1350-1418) e Pierre Col (?-1418), ambos intelectuais, teólogos, diplomatas e nobres franceses. Nas cartas, Cristine reconheceu a qualidade poética do romance, de difícil leitura porque faz uso de referências literárias e filosóficas complexas, mas afirmou que uma obra séria precisa redundar no bem, pois a seriedade de um trabalho literário depende do impacto produzido na mente de seus leitores. Portanto, para ela, o Romance da Rosa se caracteriza por ser uma obra ociosa. A competência de Cristine em argumentar com equidade contra os irmãos Col e Jean de Montreuil, gerou uma rusga intelectual a ponto de Gontier tentar forçá-la a confessar seu erro para que ele lhe perdoasse e lhe desse uma penitência leve[5]. Cristine não se intimidou e preparou um dossiê contendo cópias da troca de correspondência com seus oponentes. Ela iniciou o dossiê com uma carta intitulada Escript la Veille de la Chandeleur1401 (Escrito na Véspera da Candelária 1401) explicando seus motivos para se envolver naquela polêmica e dedicando o dossiê à rainha francesa. A data do dossiê é 1º de fevereiro de 1401, véspera da comemoração de Nossa Senhora da Candelária e foi feito em duas vias, uma enviada à rainha e uma cópia enviada ao reitor de Paris, Guillaume de Tignonville, que já havia condenado publicamente o Romance.
Figura 4 - Cristine entregando dossiê à rainha da França. British Library MS Harley 4431 - Imagem em domínio público.
Empenhada em sua epopeia filosófica e literária, Cristine continuou a expressar suas opiniões de forma erudita e sapiente, enfatizando com vivacidade a desigual condição da mulher na sociedade. Sua participação nesse debate filosófico lhe proporcionou grande respeito entre os intelectuais contemporâneos a ponto de ter o apoio indireto do respeitadíssimo Jean Charlier de Gerson (1363-1429), teólogo reformador apelidado de Doctor Christianissimus, educador, escritor, poeta e chanceler da Universidade de Paris[6]; de Guillaume de Tignonville (?-1414), conselheiro do rei Carlos VI, reitor de Paris e primeiro presidente do parlamento de Paris[7]; e de Jean II le Maingre (1366-1421), mais conhecido como Marechal Boucicaut[8], um militar francês que em 1399 fundou a ordem da cavalaria denominada L'Ordre de la Dame Blanche à l'écu Vert (A Ordem da Dama Branca com o Escudo Verde) em defesa das mulheres que sofriam injustiças sociais e trabalhavam para homens poderosos que, por sua força e poder usurpavam suas honras, bens e terras herdadas. A Ordem também protegia mulheres cujos maridos estavam ausentes ou mortos devido a guerras ou outras razões.
A troca de cartas entre Jean de Montreuil e os irmãos Gontier e Pierre Col, de um lado, e Cristine e Jean de Gerson, de outro, ficou caracterizado como o primeiro debate filosófico público e, a partir de então, por toda a Europa nas universidades e nos meios aristocráticos, surgiu o debate filosófico conhecido como La Querelle des Femmes (A Querela das Mulheres) em que alguns homens e mulheres contestavam a misoginia e o lugar da mulher na sociedade. Cristine afirmava que as mulheres não ocupavam o mesmo espaço profissional e intelectual masculino porque não tinham o mesmo acesso ao estudo e ao conhecimento que os homens tinham. Para ela, a superioridade ou inferioridade entre homens e mulheres não residia no sexo, mas nos defeitos e virtudes de cada um de acordo com sua formação pessoal e social. Provavelmente, o debate se encerrou devido às questões políticas e bélicas enfrentadas pela França na época.
Em 1404, sob encomenda do Duque Filipe da Borgonha, ela publicou a obra biográfica Le Livre des Faits et Bons Moeurs du Sage Roi Charles V (O Livro dos Fatos e Boas Maneiras do Sábio Rei Carlos V) contando a história da vida do rei. Nele ela usou a sabedoria de Carlos V para criticar a degradação do reino durante a guerra civil francesa (1407-1435) entre os Armagnacs e os Borgonheses e usou o exemplo do rei para as futuras gerações da corte e de nobres[9].
Poucos anos após a querela, Cristine tomou conhecimento das duas partes do texto traduzido e publicado, por volta de 1390, por Jean le Févre de Lesson (c. 1320-1380) intitulado Les Lamentations de Matheolus et le Livre de Leesce (As Lamentações de Matheolus e o Livro da Alegria)[10]. A primeira parte se refere ao texto Liber Lamentationum Matheoluli (Livro das Lamentações de Matheolus) escrito em latim por volta de 1295 pelo clérigo e poeta francês Mathieu de Boulogne (c. 1260 - c. 1320). Mathieu, mais conhecido como Matheolus, escreveu em versos muito bem elaborados, que sofreu e foi penalizado por ter sido casado simultaneamente com duas mulheres e, em função da experiência adquirida afirmou “qualquer homem que se case será acometido por um arrependimento irremediável”. Em seus versos ele abominou o casamento e usou maus exemplos históricos de mulheres para recriminá-las. Também usou frases e pensamentos de autores antigos e clássicos para exprimir opiniões totalmente pejorativas sobre as mulheres e afirmar que elas são monstros defeituosos e maldosos. Além disso, escreveu que de acordo com os ensinamentos de Deus, o purgatório por meio do casamento seria bom para os homens e que elas seriam apenas úteis para os prazeres carnais devido à habilidade que têm para o prazer sexual. Consciente do radicalismo de Matheolus, Jean le Févre tentou amenizá-lo ao escrever, também em versos, a segunda parte do livro, denominada Le Livre de Leesce, onde pediu desculpas às mulheres “que se sentissem ofendidas” com a publicação das Lamentações e usou bons exemplos de mulheres para escrever seus versos e acusar Matheolus de caluniador. Entretanto, ao contrapor os versos de Matheolus com versos brandos e comparar as Lamentações com o Romance da Rosa Jean deixa no ar um sentido dúbio e satírico em seus versos, já que os versos do Romance sugerem claramente que a mulher foi feita para os prazeres sexuais.
Figura 5 - Gravura do manuscrito das Lamentações de Matheolus - Imagem em domínio público.
Ao ler as Lamentações, Cristine sentiu-se ultrajada a ponto de, em um primeiro momento, sentir nojo do seu próprio sexo como se ela fosse uma aberração da natureza criada por Deus, um monstro como proposto por Matheolus e um ser defeituoso como mencionado por vários filósofos e poetas ao longo da história. Ela se perguntou como Deus criou um ser tão abjeto e porquê Ele a havia feito nascer mulher. Passada essa primeira fase, Cristine ficou revoltada e resolveu responder aos insultos criando sua obra mais famosa Le Livre de la Cité des Dames (O Livro da Cidade das Damas). Acostumada a escrever envolvendo seus leitores em suas narrativas, ela explicou que certo dia, estando em seu ateliê, foi atingida por um raio de luz que projetava a imagem de três damas coroadas. Ao demonstrar grande susto com a situação, uma das damas disse para ela se acalmar, pois elas estavam lá para consolá-la e tirá-la daquele desconforto provocado pelos preconceitos de outrem que haviam tomado conta de seus pensamentos a ponto de fazê-la questionar a si mesma e o valor de todas as mulheres. Por isso, elas anunciaram que Cristine deveria edificar uma cidade que protegeria todas as mulheres. Da mesma forma que Troia fora erigida com a ajuda de Minerva, Apolo e Netuno, essa cidade seria construída com a ajuda das três damas e jamais seria destruída.[11] Dessa forma, em 1405, Cristine publicou a obra Le Livre de la Cité des Dames (O Livro da Cidade das Damas) que se tornou extremamente conhecida nas décadas seguintes a ponto de influenciar muitos defensores de uma sociedade mais justa e equânime entre homens e mulheres. O livro baseia-se em exemplos femininos literários, filosóficos e religiosos para demonstrar que a mulher sempre participou de forma fundamental e positiva para o desenvolvimento civilizatório da humanidade. Escrito na forma de três capítulos, inspirados na mensagem das três damas, a Razão, a Retidão e a Justiça, ela imaginou uma cidade onde as mulheres seriam protegidas da violência e misoginia masculina. A dama da Razão ajuda Cristine a construir as muralhas da cidade ao usar sua sabedoria para fortalecer os princípios de igualdade em que ela sempre acreditou. A dama da Retidão ajuda Cristine a construir as casas e edifícios da cidade e para depois enchê-las de senhoras de grande renome na história. Por fim, a dama da Justiça ajuda Cristine a dar os retoques finais à cidade trazendo uma rainha para governá-la, a Virgem Maria. Cada exemplo feminino e histórico usado por ela representa um elemento estrutural que associado aos demais formam uma fortaleza inatacável, pois representam os grandes feitos e sacrifícios de mulheres que beneficiaram a humanidade ao longo do tempo e que podem ser usados pelas mulheres para mostrar que são tão importantes quanto os homens e para contrapor os preconceitos misóginos usados por eles por meio de mentiras, calúnias e palavras sutis. Cristine também usa exemplos para mostrar que as mulheres têm o direito de uma educação formal para que possam decidir o destino secular ou religioso de suas vidas. Para escrever o livro, Cristine usou todo seu conhecimento sobre os textos clássicos e históricos, bem como parte da obra de Giovanni Bocaccio (1313-1375) De Claris Mullieribus (Mulheres Famosas), uma coleção de 106 biografias sobre mulheres históricas e mitológicas.
Figura 6- Cristine recebendo as três Damas e construindo a muralha da cidade. Imagem em direito público.
O período de vida de Cristine foi um período perturbado para a França que estava embrenhada na guerra dos cem anos e na guerra civil. Assim, após a publicação da Cidade das Damas, ela se viu com poucas encomendas da corte e dos nobres envolvidos em batalhas e intrigas políticas. Por isso, passou a dedicar seus esforços para produzir obras que agradassem as damas da nobreza. Nesse sentido publicou, também em 1405, a obra Le Livre des Trois Vertus (O Livro das Três Virtudes) destinado às mulheres de todas as camadas sociais, fosse da corte, da nobreza ou da pobreza. Para evitar parecer arrogante, seguiu a estratégia de usar as três Damas do livro anterior como referência. Trata-se de um tratado, ou manual de comportamento social e pessoal para as mulheres segundo os aconselhamentos das três Damas. Nele, ela aconselha a todas amar a Deus e depois ao marido. Ensina como criar e educar os filhos, como participar das decisões do marido, como administrar a casa na ausência dele, como se vestir e se comportar em público e, por fim, afirma que tanto homens como mulheres devem seguir as sete virtudes apresentadas pelas três damas sendo temperantes, humildes, obedientes, pacientes, diligentes, castos e benevolentes[12]. Apesar do livro nos parecer, hoje em dia, um manual de subserviência, é preciso observar que se tratava de um manual que pretendia libertar as mulheres da submissão e gerar um sentido de autoestima ao dar a elas ferramentas para se valorizarem por meio da educação e da ocupação de um espaço que não lhes era permitido em um período em que o imperativo era a misoginia.
Em 1418, como consequência do massacre de Paris devido à guerra civil, Cristine se internou em um convento e lá permaneceu até sua morte por volta de 1430. Ao todo produziu mais de 40 obras e sua última publicação foi Le Ditié[13] de Jehanne d’Arc (Histórias sobre Joana d’Arc)[14], um poema escrito em 1429 sobre as histórias que eram ditas sobre a liderança de Joana d’Arc (1412-1431) na reconquista de territórios franceses em posse dos ingleses durante a guerra dos cem anos.
A maioria das obras de Cristine ainda são preservadas em manuscritos autógrafos e foram escritas em poesia porque esta era a forma literária que mais agradava a nobreza da época, amante de uma literatura cortês em que as vicissitudes da vida são contadas em verso e prosa. Seu último poema sobre Joana d’Arc celebra a chegada de uma nova era e exalta a coragem e o valor das mulheres.
Sua obra e vida tem sido motivo de centenas de estudos acadêmicos e incontáveis pesquisas ao longo dos últimos seis séculos, fato que comprova sua importância para o desenvolvimento do pensamento e espírito humano. Entretanto, é óbvio que apesar dos avanços alcançados pelas mulheres, a luta por igualdade ainda não chegou ao fim, mas eu percebo nitidamente que, nos dias de hoje, a coragem e inteligência de Cristine brotam nos seios de cada Cristina, Maria, Helena, Daniela, Flávia, Regina, Fátima, Clara, Fernanda, Isabel e tantos outros antropônimos. Eu, por exemplo, convivo com uma delas uma delas e sou enriquecido cotidianamente por ter sua companhia.
[1] Jornal Arte & Crítica nº 53, março 2020: http://abca.art.br/httpdocs/mulheres-nas-artes-plasticas-atraves-dos-tempos-antiguidade-walter-miranda/; Khronos, Revista de História da Ciência nº 10, dezembro 2020 - CHC/USP: http://www.revistas.usp.br/khronos/article/view/176966/167029.
[2] PIZAN, Cristine de. La Ciudad de las Damas. Traducción de Marie-José Lemarchand. pp. 11-32. Ediciones Siruela. Madrid. 2001; PIZAN, Christine de. The book of the City of Ladies. Translated by Rosalind Beown-Grant. pp. xvi-xl. Penguin Books. London. 1999; SANDE, Maria Mercedes Gonzales. Cristina da Pizzano y el Poder de su Escritura.Revista de la Sociedad Española de Italianistas, nº 9, 2013, pp. 211-228. Ediciones Universidad de Salamanca; SCHMIDT, Ana Rieger. Cristine de Pizan. Blogs de Ciência da Unicamp: Mulheres na Filosofia, V. 6 N. 3, 2020, pp. 1-15. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/cristina-de-pizan/.
[3] SCHMIDT, Ana Rieger. Tradução para o português: O Livro da Transformação de Fortuna, de Christine de Pizan. Revista PHILIA / Filosofia, Literatura e Arte, Porto Alegre, Vol. 2, nº 2, pp. 570-600, nov/2020. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/philia/article/view/103935/59099.
[4] ALLEN, Prudence Sister, The Concept of Woman, The Early Humanist Reformation. Vol. II, p.188, William B. Eerdmans Publishing Company, Cambridge, U.K. 2002; GREENE, Virgine. Le débat sur le Roman de la Rose. Cahiers de recherches médievales et humanistes, 14 spécial, pp. 297-311. Classiques Garnier Éditeur, 2007; SANTOS, Anna Beatriz Esser dos. A querela do Roman de la Rose e a identidade feminina: o ‘ser mulher’ em Christine de Pizan. Anais do XVII Encontro de Historia da Associação Nacional dos Professores Universitários de História Anpuh-Rio, 2016; WUENSCH, Ana Míriam. O quê Christine de Pizan nos faz pensar. Graphos Vol. 15, nº 1 – Revista da Pós-Graduação em Letras da UFPB, pp. 1-12. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/graphos/article/view/16315/9344; WARD, CHARLES Frederick. The Epistles on the Romance of the Rose and Other Documents in the Debate. A dissertation for the Degree of Doctor of Philosophy. The University of Chicago, 1911.
[5] BEUN-GOUANVIC, Claire Le. Le débat sur le Roman de la Rose ou lalectrice face aux lettrés. Lectrices d’Ancien Régime, pp. 203-23. Presses Universitaires de Rennes, 2003 ; WARD. Op. Cit. p 8.
[6] MASSON, Anne-louise. Jean Gerson, Sa vie, son temps, ses oeuvres. pp. 168-76. Librairie Generale Catholique et Classique, Lyon, France. 1894.
[7] WARD, Charles Frederick. Op. Cit. p. 6.
[8] WARD, OP. CIT. p. 6.
[9] SANDE. Op. Cit. pp. 216-218; WUENSCH. Op. Cit. P. 9.
[10] FÉVRE, Jean le. Les Lamentations de Matheolus et le Livre de Leesce. Vol 1, 1892 e Vol. 2, 1905, ambos editados por A. G. Van Hamel e publicados por Emile Bouillon, Editeur. Paris; KOSINSKI, Renate Blumenfeld. Jean Le Févre’s Livre de Leesce: Praise or Blame of Women?. Speculum, vol. 69, nº 3 (jul. 1994), pp. 705-725; ALLEN. Op. Cit. pp. 200-204.
[11] PIZAN. Op. Cit. Traducción de Lemarchand, pp. 66-70; PIZAN. Translated by Grant. pp. 7-12.
[12] LEITE, Lucimara. Christine de Pizan: Uma resistência na aprendizagem da moral de resignação. Tese de doutorado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 217 páginas. 2008. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8146/tde-14042009-152149/pt-br.php.
[13] MIRANDA, Walter. Em tradução livre, ditié pode ser entendido como o “que se diz de alguém”, ou mesmo interpretado como exemplo ou modelo a ser seguido.
[14] RIBEIRO Nathalya Bezerra. Traduzindo Le ditié de Jeanne d’Arc de Cristine de Pizan: Uma Ponte para o Resgate de Obras de Autoria Feminina na Baixa Idade Média. Dissertação para o curso de mestrado da Universidade da Paraíba. João Pessoa, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9306?locale=pt_BR;
ALGUNS REGISTROS HISTÓRICOS SOBRE AS MULHERES NA HISTÓRIA DAS ARTES PLÁSTICAS
ALGUNS REGISTROS HISTÓRICOS SOBRE AS MULHERES NA HISTÓRIA DAS ARTES PLÁSTICAS
É incontestável para qualquer raciocínio desprendido de preconceito concluir que sempre houve mulheres cultural e socialmente importantes, profissionalmente competentes, além de intrépidas e heroicas, assim como seus pares, os homens. Mas ainda falta muito para atingir a equanimidade.
https://abca.art.br/wp-content/uploads/2024/01/Arte-Critica-ed-57-Walter-Miranda.pdf
Walter Miranda – ABCA/São Paulo
*Walter Miranda é membro da ABCA, artista plástico, professor de história da arte e técnicas artísticas (www.fwmartes.com.br).
Seja nas artes, na política, na guerra, nas atividades culturais, religiosas, sociais, familiares etc., as mulheres estiveram presentes o tempo todo, mas são parcos os registros trazendo à luz seus nomes, suas características pessoais e detalhes de suas vidas profissionais.
Ao longo dos meus estudos e pesquisas, sempre ficou evidente a escassa frequência da mulher nos registros literários antigos sobre artes plásticas. Algumas vezes os textos biográficos sobre elas possuem características que podem ser consideradas educativas, mas também é possível encontrar textos que exaltam a qualidade de seus feitos.
A existência desses textos comprovam o respeito e admiração conquistados pela posição de destaque das mulheres mencionadas. Dessa forma, é possível usar um senso crítico contextualizado dentro das características históricas, culturais, regionais e temporais, para analisar os registros que chegaram até os nossos dias e deduzir alguns aspectos que possibilitam construir o “retrato falado” dessas heroínas. Meu interesse em pesquisar sobre a participação da mulher nas artes plásticas ao longo da história nasceu devido a uma das vicissitudes que a vida nos impõe e que nos leva a caminhos jamais planejados. Tem sido um longo e prazeroso caminho que já dura mais de trinta anos, mas que a cada nova artista descoberta me alenta a continuar a jornada com a certeza de que essa pesquisa será interminável, porém sempre apaixonante.
Considerando o evento comemorativo do dia internacional da mulher, no dia 8 de março, aproveito para mencionar alguns dos registros históricos que encontrei e que abordam a participação feminina no exercício das artes plásticas. Reafirmo que devido à questão sexista milenar, a existência e sobrevivência desses textos, por si só, comprova a importância da mulher ao longo da história ao sobrepujar constantemente tantos preconceitos, injustiças e tentativas de torná-las invisíveis socialmente .
História Natural de Plínio – Edição de 1857 Imagem em domínio público
O primeiro relato que temos sobre mulheres artistas é de Plínio, o velho (Caius Plinius Secundus, 23 ou 24-79)1. Na enciclopédia de 37 volumes intitulada Historia Natural, ele relata brevemente as atividades e a competência profissional de cinco ou seis pintoras. A questão numérica e os nomes das pintoras na Grécia Antiga mencionadas por Plínio foram publicados no Jornal Arte & Crítica da ABCA, nº 53 em março de 20202.
Clemente de Alexandria (c. 150 - c. 215), escreveu o texto A Mulher, Assim Como o Homem, é Capaz de Perfeição3, em que cita a existência de duas pintoras gregas4. Embora em algumas situações Clemente tenha o propósito educativo e doutrinário, ele coloca a mulher em condições de igualdade com o homem ao enaltecer algumas personagens vitoriosas consideradas como exemplos.
Bocaccio de Claris Mulieribus – Edição de 1539 Imagem em domínio público
Em 1361, Giovanni Boccaccio (1313-1375), publicou o livro De Claris Mulieribus - Mulheres Famosas abordando biografias de mulheres de diferentes condições sociais e profissionais desde a antiguidade. Para mencionar as pintoras da Grécia antiga, ele usou Plinio como referência e afirmou que a pintora grega Timarete, ou Thamyris, desprezou os deveres femininos para exercer a profissão do pai5. Entretanto, não encontrei a fonte de onde ele tirou essa informação. Real ou não, é importante notar que Bocaccio estava valorizando a mulher em uma época em que ela tinha muitas limitações para exercer atividades sociais.
Cristina da Pizzano (1363-1430) foi uma filósofa, poeta e educadora italiana que publicou vários livros sob sua orientação profissional. Como editora de livros na França sob o patrocínio da realeza, ela contratava artistas homens e mulheres e fez questão de enfatizar a qualidade excepcional do trabalho da francesa Anastaise (Anastasia) (c. 1380) pintora de iluminuras, especialista em decorar bordas, flores e paisagens6. Além disso, em 1405, Cristina escreveu e publicou o livro Le Livre de la Cité des Dames - A Cidade das Damas que exerceu forte influência cultural e social nas décadas vindouras por ser um libelo à causa das mulheres. Nele ela apresenta mulheres independentes vivendo em uma cidade utópica, livres do jugo masculino e protegidas por três damas: a Razão, a Retidão e a Justiça.
Em 1528, Baldassare Castiglione (1478-1529), diplomata, escritor e soldado italiano publicou o livro Il Libro Del Cortegiano - O Livro do Cortesão onde apresenta vários exemplos de como agir cortesmente em público e socialmente7. Para ele, homens e mulheres deveriam saber cantar, tocar instrumentos musicais, pintar e escrever poesia. O livro se tornou muito popular e influente sobre famílias nobres ou abastadas durante décadas e isso facilitou às mulheres o acesso ao estudo da pintura.
Varia Historia de Sanctas... Edição de 1583 Imagem em domínio público
Em 1583 Juan Pérez de Moya (c. 1512-1596), matemático e escritor espanhol publicou o livro Varia Historia de Sanctas e Illustres Mugeres en Todo Género de Virtudes, uma compilação de vários autores em que menciona mulheres que se destacaram ao longo da história em vários campos das atividades humanas. Entre santas, médicas, inventoras, filósofas, escritoras, músicas etc., ele menciona as pintoras mencionadas por Plínio e outras mais contemporâneas de sua época8.
Percebendo que a obra de Giorgio Vasari (1511-1574) Vite de' Più Eccellenti Pittori Scultori e Architetti – Vidas dos Maiores Pintores, Escultores e Arquitetos (mais conhecido como Vida dos Artistas), não abordava a produção artística Veneziana, em 1648, o pintor e biógrafo italiano Carlo Ridolfi (1594-1658) publicou em dois volumes a obra Le Maraviglie dell'Arte overo, Le Vite degli Illustri Pittori Venetti e dello Stato - As Maravilhas da Arte ou a Vida dos Ilustres Pintores Venezianos e do Estado contendo a biografia de vários artistas de Veneza, entre eles algumas pintoras9.
Feltina Pittrice - Edição de 1678 Imagem em domínio público
Em 1678, o pintor, antiquário e colecionador bolonhês Carlo Cesare Malvasia (1616-1683) publicou o livro Felsina Pittrice, Vite de Pittori Bolognesi – Pintura Etrusca, Vida dos Pintores Bolonheses. Seguindo a tradição Vasariana, a publicação composta em dois volumes10 aborda a vida de pintores e pintoras ativos entre os séculos XIII e XVII na Região da Bolonha. Curiosidade: Felsina é o antigo nome Etrusco da região da Bolonha.
Em 1736 e 1740, o padre português João de São Pedro (1692-17?), sob o pseudônimo de Damião de Froes Perim, publicou as duas edições do livro Theatro Heroino, Abcedário Histórico e Catálogo das Mulheres Illustres em Armas e Letras, Acçoens Heroicas e Artes Liberales. Nele Damião menciona a pintora portuguesa Rosa Maria Clara de Lima e a pintora Rita Joanna de Souza, esta brasileira nascida em Olinda, Pernambuco11. Rita é considerada a primeira pintora brasileira de que se tem conhecimento e foi mencionada pela primeira vez por Diogo Manoel Ayres de Azevedo (?) em seu livro publicado em 1734 Portugal Illustrado Pelo Sexo Feminino, Noticia Historica de Muitas Heroinas Portuguesas que Florecerão em Virtudes, Letras e Armas.
Em 1742, o pintor, historiador e escritor italiano Bernardo de’ Dominici (1683 - c. 1759) publicou em três volumes a coleção biográfica que cita várias pintoras, Vite de’ Pittori, Scultori, ed Architetti Napoletani – Vida de Pintores, Escultores e Arquitetos Napolitanos12.
Estimulado pela tradição Vasariana, o historiador italiano Rafaello Soprani (1612-1672) escreveu a coleção biográfica em dois volumes, Vite de’ Pittori, Scultori ed Architetti Genovesi – Vida dos Pintores, Escultores e Arquitetos Genoveses13, que foi publicada somente dois anos após seu falecimento e republicada em 1768. Rafaello cita várias artistas mulheres.
Em 1859, a poeta, historiadora e escritora Elizabeth Fries Lummi Ellet (1818-1877), autora de alguns livros e textos abordando a importância da mulher, publicou o livro Women Artists in All Ages and Countries – Mulheres Artistas em Todas as Épocas e Países14. O livro é resultado de uma pesquisa profunda executada por Ellet especificamente sobre a produção artística feminina.
Finalizando a lista menciono a obra do editor e escritor Walter Shaw Sparrow (1862-1940) Women Painters of the World – Mulheres Pintoras do Mundo, que aborda a pesquisa de vários autores15 sobre o trabalho de pintoras desde o século XV até o início do século XX.
Existem outros textos que tratam da importância da mulher ao longo da história, mas como minha pesquisa se atém às artistas, não há porque enumerá-los. Também encontrei outros textos relativos e mais recentes, mas não os mencionei porque são repetições dos registros apresentados aqui, sem contar algum que possa ter fugido ao meu conhecimento. O artigo escrito por Carla Avelino16 é uma boa fonte para quem se interessar em buscar referências bibliográficas de atividades femininas em outras áreas do conhecimento.
Ao estudar a história das mulheres artistas, percebo nitidamente a influência positiva e construtiva que elas causaram nas relações humanas e tenho certeza de que mesmo aquelas que foram excluídas dos registros oficiais tiveram grande importância para o desenvolvimento do conhecimento atual, seja ele empírico, teórico, filosófico, religioso, cultural ou artístico. Se no passado, elas romperam fortalezas, é importante reconhecer que ainda hoje existem barreiras a serem conquistadas, pois na luta incessante em prol de suas realizações pessoais elas enfrentam jornadas múltiplas para cuidar de si mesmas, do lar e da família. Nesse sentido, mesmo com as conquistas sociais obtidas por elas nas últimas décadas, ainda são poucos os companheiros que dividem de maneira equânime as tarefas da vida em comum. Espero ser um desses.
* Walter Miranda é membro da ABCA, artista plástico, professor de história da arte e técnicas artísticas (www.fwmartes.com.br).
Obs.:Todas as imagens estão em domínio público e foram digitalizadas por Walter Miranda.
REFERÊNCIAS:
1 PLINY, the Elder. The Natural History. Trad. John Bostock. Publ. Taylor and Francis, Red Lion Court. 1855, book 35, chap. 40; PLINY the Elder. Pliny’s Natural History. Trad. Harris Hackham. Publ. Harvard University Press 1949-54, book 35, chap. 40; MENDONÇA, Antonio da Silveira. Seleção e tradução da Naturalis Historia de Plínio o Velho. CHAA – Centro de História da Arte e Arqueologia da Unicamp. Revista de História da Arte e Arqueologia, nº 2 – 1995/96; FABRIS, Annateresa. Plínio o velho: Uma História Material da Pintura. Locus revista de história v.10, nº2 pp 73-91, 2004.
2 MIRANDA, Walter. Mulheres nas Artes Plásticas Através dos Tempos. Jornal Arte & Crítica da ABCA, nº 53, março de 2020, e disponível em http://abca.art.br/httpdocs/mulheres-nas-artes-plasticas-atraves-dos-tempos-antiguidade-walter-miranda/.
3 CLEMENT, of Alexandria. Women as Well as Men Capable of Perfection. Ante-Nicene Christian Library: Translations of the Writings of the Fathers. Edinburgh. Book IV, pp. 193-6. 1859.
4 MIRANDA. 2020, op.cit.
5 BOCCACCIO, Giovanni. On Famous Women. Rutgers, The State University. Traduzido por Guido A. Guarino. p. 122. 1963.
6 PIZAN, Christine de. The Book of the City of Ladies. Penguin Books. pp. 5-240. 1999.
7 CASTIGLIONE, Baldassare, Il Libro Del Cortegiano. pp. 13-246. 1528.
8 MOYA, Juan Perez. Varia Historia de Sanctas e Illustres Mugeres en Todo Género de Virtudes. pp. 321, 321ª, 322 e 322ª. 1583.
9 RIDOLFI, Carlo. Le Maraviglie dell'Arte overo, Le Vite degli Illustri Pittori Venetti e dello Stato. 1698.
10MALVASIA, Carlo Cesare. Felsina Pittrice, Vite de Pittori Bolognesi. 1678.
11 PERIM, Damião de Froes. Theatro Heroino, Abcedário Histórico e Catálogo das Mulheres Illustres em Armas e Letras, Acçoens Heroicas e Artes Liberales. Tomo II. Lisboa Occidental. pp. 356-7. 1740.
12 DOMINICI, Bernardo de. Vite de’ Pittori, Scultori, ed Architetti Napoletani. Tomos I ao III. 1742
13SOPRANI, Rafaello. Vite de’ Pittori, Scultori ed Architetti Genovesi. Tomos I e II. 1768.
14ELLET, Elizabeth Fries Lummi. Women Artists in All Ages and Countries. Harper & Brothers Publishers. New York. 1859.
15SPARROW, Walter Shaw. Women Painters of the World. Hodder & Stoughton. London. 1905.
16 AVELINO, Carla. Resumo de: Portugal Ilustrado Pelo Sexo Feminino de Diogo Manuel Aires de Azevedo (Lisboa, 1734), tradição do género. Polissema, nº 10, Revista do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto, Portugal. pp. 83-97. 2010. Disponível em https://parc.ipp.pt/index.php/Polissema/issue/view/121 ;
Atemporalidade
Durante a pandemia da covid-19, recolhido em meu ateliê devido ao Lockdown eu produzi 69 trabalhos que fizeram parte da exposição “Tempo Insular” realizada em novembro de 2022 no espaço Mahavidya Cultural. Dentre esses trabalhos incluem-se a série de três pinturas denominadas Atemporalidade 1, 2 e 3.
O título da série refere-se à conscientização de que o tempo ficou paralisado durante o isolamento. De repente, o planeta se tornou onipresente na mente das pessoas de forma atemporal, íntegro. Essa sensação me inspirou a criar esses três trabalhos que mostram todos os continentes simultaneamente em uma única imagem. Por isso, aproveitei a moldura de alguns relógios de parede que eu havia ganhado por estarem quebrados.
A disseminação da pandemia por todos os continentes fez com que a maioria dos povos tomasse consciência da finitude do planeta. Em todas as regiões a poluição atmosférica e sonora se reduziu drasticamente. O silêncio imperava pelas grandes cidades. A impossibilidade de locomoção causou em muitas pessoas a sensação de um tempo congelado em que nada de diferente acontecia e, para escapar da monotonia, muitos procuraram ocupar esse tempo estático com atividades físicas em suas casas ou por meio da internet. Com isso, o planeta teve um pequeno descanso do estresse causado pelas consequências das ações de ocupação territorial desorganizada e os seres humanos puderam rever conceitos filosóficos sobre a sua existência e sobre a qualidade de vida proporcionada pela tecnologia dominada atualmente. Se isso terá resultados positivos, só o tempo dirá.
Catálogo Cartografias de Gaia
Texto do Catálogo da exposição Cartografias de Gaia realizana na galeria Nilton Zanotti do Palácio das Artes em Praia Grande e no Centro Cultural Correios em São Paulo
CARTOGRAFIAS DE GAIA de Walter Miranda
Desde os anos 1980, a temática ecológica tem sido constante em minha produção artística, assim como a incorporação de placas de computadores e outros acessórios do nosso cotidiano tecnológico. A série de trabalhos denominada “CARTOGRAFIAS DE GAIA” apresenta obras que reproduzem diversas projeções cartográficas para tratar da situação atual de degradação ambiental no planeta. A degradação planetária, provocada pelas ações do ser humano ávido por enriquecimento imediato, conforto material desmesurado e pela presunção de que, com a tecnologia, podemos dominar a natureza.
Os trabalhos bi e tridimensionais foram realizados por meio da utilização da tradicional técnica da pintura a óleo e da incorporação de objetos descartados pela sociedade contemporânea. A utilização conjunta desses dois fatores aparentemente antagônicos (tradição e contemporaneidade) gera o desafio compositivo de obter uma harmonização visual durante o processo criativo de cada trabalho que, quando concluído, provoca no observador reflexões filosóficas sobre a poluição do meio ambiente e o consequente declínio da qualidade de vida do homem no planeta.
O suporte para os trabalhos são a madeira, objetos de plástico, esfera de alumínio e a tradicional tela. Nos suportes foram incorporados objetos descartados pela sociedade contemporânea, tais como: placas de computador (serradas e esmerilhadas ou em pedaços e cacos), componentes eletrônicos (processadores, chips, alto-falantes, diodos, capacitores e resistores), teclados de computador, cartões de crédito, balas de revólver, moedores de carne, balanças, chaves, cadeados, relógios e cúpulas de relógios, filme plástico de PVC (poli cloreto de vinila), canudos e presilhas de agulhas para acupuntura, bijuterias, moedas, palitos de fósforo queimados, cascas de lápis apontados, farelos de borracha, cacos de vidro etc. Também incorporei elementos da natureza, tais como: sementes, conchas, caracóis, terra, areia, pedras, casco de tatu etc.
Todos os componentes que eu usei foram colocados de acordo com um planejamento de ordem estética a fim de criar texturas e efeitos visuais peculiares que provocam a curiosidade do espectador. Em alguns quadros, pintei de forma realista (como detalhe) o mapa da região apresentada no quadro inteiro a fim de criar um elo que fecha o quadro em si mesmo, ou seja: o quadro é um detalhe dele mesmo e um detalhe dele é o quadro todo.
Cartografias de Gaia tem um total de 44 obras em que utilizei a interpretação artística de projeções cartográficas da seguinte forma:
OBRAS BIDIMENSIONAIS
• 1 painel medindo 2,5m X 2,5m foi feito com placas de circuito impresso, teclados de computador e mouses;
o Esse trabalho apresenta o planeta Terra como um óvulo sendo fecundado pela tecnologia humana. Ele representa a importância extrema que o homem dá ao uso da tecnologia atualmente. Por isso, o planeta foi pintado sobre tela e encontra-se sobre um mundo plano preenchido por placas eletrônicas. Assim, a terra é representada como um óvulo, cuja camada de proteção é composta por teclados de computador e os espermatozoides que tentam penetrar o óvulo são representados por mouses. Ironicamente, o único mouse espermatozoide que consegue penetrar a capa do óvulo tem a marca “Clone”.
• 5 quadros em formatos cartográficos ovais, semicirculares ou multiformes apresentam todas as regiões do planeta.
o Esses trabalhos foram preenchidos com cartões de crédito (símbolo do consumismo desenfreado);chaves (símbolo de abertura ou encerramento de caminhos humanos), placas de computador (símbolo da tecnologia atual), diversos CDs (que representam a brilhante e aparente riqueza proporcionada pela tecnologia atual), canudos e presilhas de acupuntura, mini interruptores eletrônicos, diodos, resistores e capacitores eletrônicos etc.
o Um dos quadros foi feito com 30.000 diodos eletrônicos + 2.500 canudos e 1.600 presilhas de agulhas de acupuntura + 500 capacitores e 400 resistores eletrônicos. Ele também apresenta as cinco ilhas de resíduos plásticos que flutuam de forma concentrada em algumas partes dos oceanos.
• 3 quadros ovais com o mapa-múndi representam a evolução dos continentes durante as eras geológicas .
o Eles representam a progressão da poluição tecnológica gerada pelos humanos ao longo do tempo, pois os trabalhos estabelecem um paralelo evolutivo desde os primórdios das civilizações, quando o homem se espalhou pelo planeta usando materiais naturais para conquistar o meio ambiente, até os dias de hoje, em que o homem está poluindo o planeta de forma inimaginável. Os quadros foram preenchidos com sementes de goiaba, lascas de lápis apontados e resíduos de placas eletrônicas, plásticos, metais etc.;
• 2 quadros apresentam as formas dos primeiros mapas-múndi, criados em 1507, onde aparece pela primeira vez a representação das Américas.
o Um deles foi preenchido com placas de circuito eletrônico, sementes de goiaba e presilhas de agulhas de acupuntura; e outro foi preenchido com lascas de lápis apontados, que representam o desmatamento europeu no século XVI.
• 6 quadros circulares representam regiões do planeta preenchidas com restos de objetos que se relacionam com as características de cada região, a fim de representar a poluição causada pelo consumo excessivo de materiais processados pela indústria atual.
o Na América do Sul, usei palitos de fósforo para representar as queimadas florestais;
o Na Europa, usei pequenos pedaços de placas de computador para montar um mosaico visual representativo das diversas minirregiões que compõem o continente;
o Na África, usei a areia devido à influência marcante do Saara, bem como da seca em diversas regiões daquele continente;
o Na América do Norte, usei diversos chips e processadores de computador para representar a característica da sociedade tecnológica local;
o Na Ásia, usei cascas de lápis apontados para representar a cultura manual que ainda hoje se mantém imperativa na região;
o Na Oceania, usei detritos de placas de computador para representar a dominante produção industrial na região e que tem suprido o mercado mundial de bens eletrônicos;
Ao fundo de alguns quadros, pintei mãos e pés (que representam a ocupação humana do planeta). Em outros, manuscrevi um texto, que segue padrões lineares compositivos específicos de cada trabalho. Este texto, Carta do Chefe Seattle, é conhecido mundialmente e tem uma história muito curiosa:O chefe indígena norte-americano Seattle fez um discurso, em 1855, durante um tratado de paz em que as terras indígenas foram vendidas em troca de uma reserva. Esse discurso foi presenciado por um admirador seu, Henry A. Smith, que o publicou em um jornal local em 1887, baseado em suas lembranças sobre o discurso.Em 1971, o discurso sofreu alterações feitas pelo roteirista, Ted Perry, para um documentário sobre ecologia. A partir daí, o texto passou a ser conhecido mundialmente como a carta resposta do Chefe Seattle ao presidente norte-americano Franklin Pearce.Embora, a autoria seja ambivalente, essa comunhão de textos, a meu ver, apresenta uma mensagem, que se torna cada vez mais atual, para a humanidade. Por isso, resolvi incluí-la em parte desta série de trabalhos. Os interessados na íntegra do texto podem acessá-lo em meu site: http://www.fwmartes.com.br/imprensa/114/carta-do-chefe-seattle
• 2 quadros circulares apresentam os polos terrestres;
o Na Antártida usei detritos de componentes eletrônicos para representar as marcas da ocupação humana e científica no continente ainda pouco explorado;
o No Ártico também usei cascas de lápis apontados, porém sujas com tinta e óleo, para representar as marcas da poluição humana no continente pouco habitado.
• 1 quadro circular representa todos os continentes vistos simultaneamente e preenchidos com pedaços de placas de computador completamente sujas com óleo industrial (outro símbolo da poluição tecnológica).
• 1 quadro circular, pintado em cores soturnas, representa a imagem do planeta sem água;
o No quadro “Sem Água”, usei uma mistura dos rejeitos que usei nos demais quadros para representar os continentes e que, incorporados à pintura a óleo, transformam-se em uma representação dramática de uma imagem captada por meio de radar e divulgada pela Agencia Espacial Europeia, do que seria a Terra sem a água. Essa imagem está sobreposta a um círculo preenchido com cacos de vidros mostrando os limites da água, que gera a forma arredondada do planeta, incutida em nosso inconsciente coletivo.
• 3 quadros com cartografias extravagantes apresentam mapa-múndi preenchido com mini botões eletrônicos de pressão, sementes de goiaba e presilhas de agulhas de acupuntura;
o Dois deles têm a forma losangular, sendo que os oceanos foram feitos em alto relevo usando serragem de placas de circuito impresso e detritos de componentes eletrônicos e as áreas do Ártico e da Antártida foram preenchidas com presilhas de agulhas de acupuntura. Um deles tem os continentes preenchidos com 5.000 mini botões eletrônicos de pressão e presilhas para agulhas de acupuntura.
o O terceiro quadro tem a forma análoga a um coração, reproduzindo uma das diversas projeções cartográficas que existem.
• 2 quadros apresentam mapa-múndi de ponta cabeça.
o Trata-se de uma homenagem ao pintor uruguaio Joaquim Torres Garcia que, na primeira metade do século passado, postulou uma nova forma de ver o mundo sem o ponto de vista convencional usado pela cultura ocidental.
• 1 quadro oval apresenta o mapa-múndi pintado de forma inversa, como se o observador da obra estivesse dentro do quadro observando os espectadores do trabalho;
• 1 quadro oval, apresenta o mapa-múndi “deitado”;
• 1 quadro circular bilateral (frente e verso) representa a real natureza e beleza do planeta;
• 1 quadro retangular feito de retalhos de madeira, pequenas placas de computadores e canudos de acupuntura recortados, representam a beleza visual da poluição atmosférica;
• 3 quadros retangulares apresentam a Terra recortada vertical, diagonal e horizontalmente aludindo ao desequilíbrio ambiental e o descompasso entre o uso da tecnologia e a integração com o planeta de forma sustentável.
• 2 quadros ovais apresentam a África e a América do Sul em evidência e os demais continentes de forma facetada;
o A África e a América estão centralizadas e pintadas de forma realista e os demais continentes estão geometricamente facetados. Assim, a parte central é vista de forma natural e as laterais como se fossem as faces de um diamante para representar o planeta visto por um prisma e como uma pequena joia imersa na infinitude do universo.
OBRAS TRIDIMENSIONAIS
• 1 objeto modular montado em forma de torre, feito com teclados de computadores;
o A base do objeto tem a forma octogonal, o primeiro módulo tem a forma hexagonal, o segundo módulo tem a forma pentagonal, o terceiro módulo tem a forma quadrática, o quarto módulo tem a forma triangular e a parte superior é composta por uma esfera.
• 3 “Livros de Gaia”, cujas páginas são placas de computador + objetos, contam o processo do desenvolvimento tecnológico humano e sua relação com o planeta, Gaia.
• 2 objetos, “A Máquina do Juízo final” e “O Equilíbrio Vital”, foram executados a partir do reaproveitamento de um moedor de carne e uma balança.
o O primeiro apresenta a Terra sendo moída em um moedor de carne, e o segundo apresenta a Terra em uma balança enquanto um homem avalia o Sol e a Lua. Ambos representam a coisificação da natureza e de valores filosóficos universais transformando-os em meros valores materiais.
• 2 objetos tridimensionais que apresentam a Terra em forma de ovo acoplada sobre placas de computador abordam as questões ecológicas que podem afetar o equilíbrio climático no planeta.
• 1 objeto em forma sextavada representa o lixo eletrônico despejado ao redor do planeta.
INSTALAÇÃO
• 1 instalação composta de 1 quadro circular e bilateral com imagem do planeta pintada na frente e no verso; imagens digitalizadas; 38.000 botões eletrônicos de pressão; acetato de contato para teclados; marcadores eletrônicos de tempo; globo de plástico; tampo de monitor e seringa subcutânea abdominal.
PERFORMANCE
• 1 performance em que é abordada a grave situação ecológica em que o planeta se encontra devido às ações humanas. A peça tem duração de vinte minutos e conta com a participação do grupo “Suspiro na Arte”. Nela é apresentada a venda fictícia do planeta Terra por um empresário superpoderoso e que não se importa com as injustiças sociais e econômicas existente entre os países.
Em consonância com os quadros expostos, a ideia essencial da instalação e da performance é demonstrar a finitude do planeta Terra e lembrar que o peso das nossas ações coloca em risco o próprio planeta e as nossas vidas.
Finalmente, cabe dizer que esta série de trabalhos, em que uso o mapa-múndi para expressar minhas preocupações atuais enfatiza meu “modus operandi”, já que em toda a minha produção artística, procuro sempre unir a razão à emoção (base de meu processo criativo) a fim de criar uma obra que faz uso de técnicas tradicionais incorporadas a elementos da sociedade atual para estabelecer diversas relações metonímicas que provocam questionamentos no espectador.
Nesse sentido, a linguagem subjetiva que uso para expressar meus sentimentos, anseios, ideias e conceitos filosóficos possibilita que o observador tire suas próprias conclusões sobre o tema abordado em cada série de trabalho. O resultado é a cumplicidade ou a negação, não importa. Ambas formam um tipo de envolvimento que remetem à essência do que tento transmitir.
Walter Miranda - agosto/2019
Cartografias de Gaia: heterotopias poéticas na arte de Walter Miranda
MULHERES NAS ARTES PLÁSTICAS ATRAVÉS DOS TEMPOS - ANTIGUIDADE
https://abca.art.br/2024/02/22/mulheres-nas-artes-plasticas-atraves-dos-tempos-antiguidade/
Se você olhar à sua frente, elas estarão lá. Olhou para o lado direito? Esquerdo? Atrás? Elas sempre estiveram, estão e estarão presentes. Sim, estou falando das nossas eternas companheiras, as mulheres. Elas são chamadas de sexo frágil, mas plagiando o músico Erasmo Carlos: “eu, que faço parte da rotina de uma delas, sei que a força está com elas”.
Tá certo, quando é preciso abrir a tampa de um vidro de palmito elas nos chamam, mas a força delas é mais poderosa por ser sutil, quase imperceptível, é a força do convencimento; da persistência; da resiliência, que dobra, mas não quebra. Ou seja, elas estão e sempre estiveram presentes em nossas vidas. Muitas vezes operam em silêncio e com delicadeza, mesmo não sendo valorizadas como merecem.
Há muito tempo se tenta controlá-las e obrigá-las a seguir parâmetros sociais determinados pelos homens. Basta ler a Bíblia para vermos os aconselhamentos dados a elas. Mesmo na Grécia antiga, país que inventou a democracia, elas eram proibidas de votar.
Apesar das diversas tentativas de apagá-las da história, elas sempre estiveram presentes. Se quase não as encontramos nos livros oficiais, quem pesquisa documentos antigos encontra registros de grandes mulheres que alteraram o curso da história humana. Muitas foram apagadas dos registros oficiais ou tiveram sua história pessoal alterada. Caso clássico na cultura ocidental é o de Maria Madalena, cujo evangelho foi tornado apócrifo1 e ela é confundida com uma pecadora no Novo Testamento. Entre tantas outras, também é possível citar a rainha egípcia Hatshepsut2, cuja existência sofreu a tentativa de ser apagada da história por seu sucessor, mas a enorme quantidade de obras e templos deixados por ela possibilitou o resgate de seu legado.
No mundo das artes também, elas sempre existiram, mas nas escolas tradicionais ou mesmo de arte, raramente se fala de artistas mulheres quando se menciona artistas importantes ao longo da história da humanidade, pelo menos até o século XIX. É certo que ao longo do tempo houve alguns historiadores que prestaram atenção em sua importância e registraram em livros seus nomes e atividades, contudo são livros ignorados pelas culturas moderna e contemporânea. Mas, a partir da segunda metade do século XIX elas começaram a se unir e lutar por seus direitos sociais. Conquistaram reconhecimento no meio artístico mas, ainda hoje, sofrem grande preconceito social e cultural.
Em 1990, percebi a presença delas na história das artes. Estava em Washington e tive a oportunidade de visitar o National Museum of Women in the Arts (Museu Nacional de Mulheres nas Artes). Só então percebi que alguma coisa estava errada no que eu havia aprendido pelos livros clássicos de história da arte. Daí em diante, passei a pesquisar sobre a atividade delas. Fiquei impressionado com a quantidade de artistas mulheres que lutaram para mostrar seus trabalhos de alta qualidade e ao mesmo tempo o empenho delas para serem respeitadas em um meio cultural extremamente machista. Fiquei apaixonado pelo tema e fui comprando os parcos livros que encontrei pela frente (escritos no século XIX e XX) ou lendo e fazendo anotações daqueles que não pude comprar e achando textos guardados em bibliotecas.
Depois de tantos anos, me senti encorajado a dar alguns cursos rápidos sobre esse importante tema: A participação das mulheres no campo das artes plásticas.
Como o tema é vasto, atrevo-me a escrever resumidamente, em alguns capítulos a serem publicados a cada edição do Jornal da ABCA, sobre a participação histórica da mulher no campo das artes plásticas desde sempre. Sim, desde sempre, pois desde o início daquilo que chamamos de cultura elas tiveram forte e constante presença no meio artístico e social.
Uma recente teoria indica que mesmo na Pré-história as mulheres já se manifestavam artisticamente. De acordo com essa teoria boa parte das pinturas rupestres, cujas assinaturas eram feitas com a silhueta das mãos, foi feita por mãos femininas. Ao que parece, a relação entre o tamanho dos dedos das mãos masculinas e femininas é diferente e as marcas deixadas por elas nas cavernas servem como comprovação de sua autoria3.
Há também que considerar a importância feminina ainda na Pré-história pela quantidade de esculturas atribuídas a deusas encontradas por arqueólogos em sítios milenares na forma de esculturas em argila, marfim ou pedra.
Caso especial é a “Grande Mãe”, cuja origem remonta à Pré-História e à cultura Frígia na Antiguidade sendo que mais tarde seria chamada de deusa Cibele4 pela cultura greco-romana. Ela permeou a mitologia ocidental passando pela Idade Média, Renascimento e, ainda hoje, continua se fazendo presente em monumentos públicos de alguns países. Cibele é sempre retratada como uma deusa ou rainha sentada em um trono e acompanhada por uma ou duas leoas.
A Grande Mãe Museu das Civilizações Anatolianas Ankara, Turquia Imagem em domínio público
Fonte de Cibele na Praça de Cibele em Madrid, Espanha
Escultor: Francisco Gutiérrez Arribas
Imagem em domínio público
Minha pesquisa sobre a mulher nas artes plásticas se restringe à cultura ocidental. Entretanto, é possível abranger superficialmente o Egito Antigo. Embora eu não tenha encontrado relatos ou imagens sobre a existência de pintoras ou escultoras nessa cultura, me atrevo a pensar que elas também existiram, pois a mulher tinha mais liberdade do que nas demais civilizações da época. Muitos relevos, pinturas e manuscritos mostram maridos e esposas exercendo atividades em conjunto. Os documentos comprovam que ela podia gerenciar os negócios da família, se divorciar e exercer diversas atividades profissionais, religiosas e artísticas, entre elas a dança e a música (cantando ou tocando instrumentos musicais)5.
Sabemos que na Grécia Antiga pinturas em paredes e painéis eram comuns, mas infelizmente as obras não chegaram até os nossos dias. Existem poucas fontes acadêmicas da época que testemunham esse fato mencionando inclusive alguns nomes das artistas e breves relatos sobre suas vidas e trabalho. Assim, as parcas informações que temos hoje foram obtidas de textos antigos sobreviventes ou de textos que mencionam autores antigos. Algumas imagens em vasos gregos antigos mostram mulheres pintando os vasos juntamente com os homens.
Na Grécia antiga, era comum aos artistas apresentarem suas obras em competições artísticas e assim como nos dias de hoje, geralmente, os trabalhos eram comprados pela classe rica e pelos governantes.
A mais ampla fonte de informações sobre mulheres artistas na Antiguidade é encontrada na enciclopédia de 37 volumes intitulada Naturalis Historia, escrita por Plínio, o velho (Caius Plinius Secundus, 23 ou 24-79).
Em sua obra, Plínio cita brevemente cinco ou seis mulheres pintoras e essas menções nos servem de referência para saber da existência delas e sua competência profissional: Timarete, Aristarete, Iaia, Olímpia, Irene e talvez, Calipso6.
Timarete ou Thamyris (c. 400-500 a.C.) foi uma pintora, filha do pintor ateniense Mícon, o jovem. Pode-se concluir que ela era bastante respeitada profissionalmente porque pintou um painel da deusa Diana para a cidade de Éfesos (cidade que reverenciava Diana). Plínio afirmou que o painel era o mais antigo existente até então e era muito famoso.
Boccaccio em seu livro De mulieribus Claris (Mulheres Famosas) afirma que Timarete desprezou os deveres femininos para exercer a profissão do pai7. Entretanto, não encontrei a fonte de onde ele tirou essa informação. Se for verdade, ela serve de embasamento para concluir que Timarete tinha uma personalidade forte e feminista, já que na sociedade em que ela vivia a mulher tinha muitas limitações para exercer atividades profissionais.
Aristarete (?) era filha e aluna do pintor grego Nearkos. Nada se sabe sobre a época em que ambos eram ativos. Devido a uma de suas pinturas que representa Esculápio ou Asclépio, deus da medicina, e algumas obras de Nearkos citadas por Plínio, pode-se concluir que ambos pintavam temas mitológicos.
Iaia (c. 110 a.C.), posteriormente conhecida como Marcia, foi uma pintora nascida na cidade de Cízico (atual Turquia) dominada pelos gregos e depois pelos romanos. Plínio menciona que ela pintava usando pincéis e também esculpia em marfim. Pintou vários retratos de mulheres e painéis em Roma. Um de seus trabalhos mais comentados em vida foi um grande painel representando uma velha senhora. Plínio afirmou que ela fez um autorretrato olhando-se em um espelho. Essa observação serviu de inspiração durante a Idade Média para alguns artistas criarem obras representando Marcia pintado seu autorretrato. Ele também mencionou que nenhum pintor era mais rápido do que ela e que seu talento era tamanho que seus trabalhos eram vendidos a preços mais altos do que os dos concorrentes retratistas. Ela permaneceu solteira por toda a vida, fato que nos permite imaginar que não se submeteu ao machismo que imperava em sua época e que poderia interromper sua carreira.
Marcia pintando autorretrato. Imagem do Século XV
Autor desconhecido Imagem em domínio público
Olímpia (?) é outra artista mencionada por Plinio. Ele explica que nada se sabe sobre sua carreira e pinturas exceto que ela teve um aluno chamado Autobulus. Essa informação é suficiente para inferir que, naquela época, uma mulher dando aulas sobre uma profissão exercida majoritariamente por homens, deve ter sido uma artista muito respeitada em vida.
Irene (?) era filha do artista Clatino. Não sabemos a origem e a data de nascimento de ambos. Embora ela seja a segunda pintora citada por Plínio, decidi mencioná-la ao final da lista em razão de uma polêmica sobre sua produção artística.
Devido a diferentes interpretações gramaticais sobre o texto de Plínio, alguns estudiosos dizem que Irene é conhecida pela pintura de uma ou de cinco obras. No primeiro caso, apenas uma obra de sua autoria teria sobrevivido: a pintura de uma jovem, cuja obra ainda se encontrava na cidade de Elêusis na época de Plínio. No segundo caso, além dessa obra, ela seria autora das obras: a ninfa Calipso; um homem velho; o prestidigitador Teodoro e a dançarina Alcisthenes.
Entretanto, existem estudiosos que afirmam que Calipso é o nome de outra artista autora de três obras: um homem velho; o prestidigitador Teodoro e a dançarina Alcisthenes.
Dessa forma, os estudiosos que atribuem funções acusativas ao texto de Plínio afirmam que Irene é autora de cinco obras. Já os estudiosos que atribuem a função nominativa ao texto afirmam que Irene é autora de uma obra e que existiu outra pintora, de nome Calipso, autora de três obras8.
Embora indiretamente, a meu ver, Plínio menciona mais uma artista: Cora de Sicião (c. 650 a.C.). Aprendiz e filha do ceramista Butades, ela ficou conhecida como autora de um desenho que se tornou referência para pintores, durante séculos, como a criação do desenho ou mesmo da pintura de retratos. Plínio conta que ela se enamorou de um aluno de seu pai e que na véspera de uma longa viagem dele ao exterior, ela desenhou com carvão, na parede do ateliê do pai, o perfil do rosto do namorado projetado por uma luz. Ao notar o desenho feito pela filha, Butades modelou em argila o rosto do rapaz, criando assim o primeiro retrato em relevo em argila9. O relevo ficou preservado na cidade de Corinto até ser destruído durante a invasão da cidade pelos Romanos em 146 a.C.
Helena do Egito (c. 350 a.C.) é uma das duas pintoras da Antiguidade que não foi mencionada por Plínio. O primeiro relato que temos sobre ela é de Ptolomeu Heféstio (Ptolemaei Hephaestioni) (também conhecido como Ptolemaeus Chennus), um gramático alexandrino ativo durante os reinados de Trajano e Adriano e criador da obra Novarum Historiarum (Novas Histórias). Não temos os textos originais de Ptolomeu, mas sua obra foi comentada por Fócio I (c.820-891), patriarca de Constantinopla (também conhecido como São Fócio) na coletânea de resenhas bibliográficas, denominada Myriobiblion (Biblioteca). De acordo com Fócio, Ptolomeu10 afirmou que Helena era filha do pintor Tímon do Egito e que ela pintou uma cena da vitória de Alexandre o Grande (353 a.C.-326 a.C.) sobre o rei Persa Dario III, durante a batalha de Isso. Alguns acreditam que posteriormente, foi feita uma cópia de sua pintura em um mosaico encontrado no piso de uma casa aristocrática de Pompéia, chamada de casa do Fauno. Entretanto, existe a possibilidade de que o mosaico tenha sido baseado na obra do pintor grego Filoxeno de Erétria11 (sec. IV a.C.), pois Plínio afirma que Filoxeno pintou uma obra com esse tema sob encomenda de Cassandro (ca. 350 a.C.-297 a.C.) um dos generais de Alexandre e posteriormente rei da Macedônia.
Mosaico de Alexandre durante a batalha de Isso
Museu Arqueológico Nacional de Nápoles
Imagem em domínio público
Outra pintora da Grécia clássica não mencionada por Plínio é Anaxandra (c. 220 a.C.), filha e aluna do pintor grego Nealkes, um pintor de temas mitológicos e cotidianos. Sabemos de sua existência porque ela foi mencionada no século II pelo teólogo cristão Clemente de Alexandria (c.150-c.215), em um texto denominado “A mulher, assim como o homem, é capaz de perfeição”. Clemente cita como sua fonte o trabalho12 de um estudioso do século I, Dídimus Calcenteros (c.63a.C-c.10).
Até o momento, não encontrei relatos sobre mulheres pintoras ou escultoras durante o império romano, mas dois afrescos encontrados em Pompéia atestam que, definitivamente, as mulheres exerciam a atividade de pintoras. Uma das imagens mostra uma artista pintando um quadro usando como referência uma estátua e a outra imagem mostra uma pintora usando um cavalete.
Mulher pintando ao lado de uma estátua de Príapo
Foto: Wolfgang Riege via Wikimedia Commons
Museu Arqueológico Nacional de Nápoles
Imagem em domínio público
As cidades de Pompéia e Herculano também possuem vários afrescos que nos possibilitam entender que a arte romana sofreu bastante influência da arte grega. Por isso, as conclusões sobre essa época são baseadas muitas vezes em interpretações dessas fontes. Além disso, é extremamente raro encontrar informações sobre a atuação profissional das mulheres no campo das artes na Antiguidade e certamente muitas artistas importantes jamais serão reconhecidas por não serem mencionadas nos textos que chegaram até os nossos dias.
* Walter Miranda é membro da ABCA, artista plástico e professor de história da arte e técnicas artísticas (www.fwmartes.com.br).
REFERÊNCIAS:
[1] DE TOMMASO, Wilma Steagall. Maria Madalena nos textos apócrifos e nas seitas gnósticas. Revista Último Andar – Pesquisa em Ciência e Religião, (14) pp.79-94 – 2006 disponível em: http://www4.pucsp.br/ultimoandar/download/artigos_maria_madalena.pdf;
BARBAS, H. Madalena, História e Mito. Lisboa, Portugal. Ésquilo edições e multimídia. 2008 – disponível em: http://www.helenabarbas.net/books/2008_Madalena_Historia_e_Mito_H_Barbas.pdf. 2 SOUZA, Aline F. Hatshepsut , A mulher-Faraó: Representações da rainha Hatshepsut como instrumento de legitimação. Dissertação apresentada na Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2010 – Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1368.pdf;
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3 HUGHES, Virginia. Were the First Artists Women? National Geographic. Ocotober 9, 2013. Disponível em: https://news.nationalgeographic.com/news/2013/10/131008-women-handprints-oldest-neolithic-cave-art/; SNOW, Dean. Sexual Dimorphism in European Upper Paleolithic Cave Art. American Antiquity. 78(4): pp.746-761. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/273042625_Sexual_Dimorphism_in_European_Upper_Paleolithic_Cave_Art. 4 LEGGE, F. The Most Ancient Goddess Cybele. Journal of the Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, pp.695-714 Published by Cambridge University Press, 1917; BRITANNICA, E. The Great Mother of Gods. Acessivel em: https://www.britannica.com/topic/Great-Mother-of-the-Gods; WORDPRESS. Cybele, The Mother Goddess. Acessível em: https://womeninantiquity.wordpress.com/2018/11/27/cybele-the-mother-goddess/. 5 MARK, Joshua J. Women in Ancient Egypt. Ancient History Enciclopedya. Last modified Nov 04, 2016. Disponível em: https://www.ancient.eu/article/623/. 6 PLINY the Elder. The Natural History. Trad. John Bostock. Publ. Taylor and Francis, Red Lion Court. 1855, book 35, chap. 40; PLINY the Elder. Pliny’s Natural History. Trad. Harris Hackham. Publ. Harvard University Press 1949-54, book 35, chap. 40; MENDONÇA, Antonio da Silveira. Seleção e tradução da Naturalis Historia de Plínio o Velho. CHAA – Centro de História da Arte e Arqueologia da Unicamp. Revista de História da Arte e Arqueologia, nº 2 – 1995/96; FABRIS, Annateresa. Plínio o velho: Uma história material da pintura. Locus revista de história v.10, nº2 pp 73-91, 2004. 7 BOCCACCIO, Giovanni. De Mulieribus Claris (On Famous Women). Trad. Guido A. Guarino. Italica Press Inc. New York. 2011. 8 LINDERSKI, Jerry. The Paintress Calypso and Other Painters in Pliny. Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, Bd. 145, pp. 83-96. 2003; CORBEILL, Antony. A New Painting of Calypso in Pliny the Elder. Eugesta Revue, nº 7 pp. 184-98, 2017. 9 PLINY. Op. Cit. Book 35, chap. 43 e Pliny’s. Op. Cit. Book 35, chap. 43.
10 FÓCIO. Photii Bibliotheca.1606. Traduzido por Andreas Schott. p. 185, seção 348; GALE, Thomas. Historiae Poeticae Scriptores Antiqui (Ptolemaei Hephaestionis). 1675. p. 320; HEPHAESTIONIS, Ptolemaei. Novarum Historiarum. 1734. Traduzido ao latim por Joseph E. Roulez. p. 159. 11 PLINY. Op. Cit. Book 35, chap. 36 e Pliny’s. Op. Cit. Book 35, chap. 36. 12 CLEMENT of Alexandria. Women as well as Men capable of Perfection. Ante-Nicene Christian Library: Translations of the Writings of the Fathers. Edinburgh. Book IV, pp. 193-6. 1859.
Os Direitos Humanos na Arte de Walter Miranda e a Crítica Ontológica
Os Direitos Humanos na Arte de Walter Miranda e a Crítica Ontológica
Mirian de Carvalho
(Associação Brasileira de Críticos de Arte / Associação Internacional de Críticos de Arte / Universidade Federal do Rio de Janeiro)
https://abca.art.br/wp-content/uploads/2022/09/E-book-Jornada-ABCA-2020-versaofinal.pdf - Página 177
Ante o flagelo da Covid 19, agravado no Brasil em virtude de problemática que atinge sobretudo a classe trabalhadora, os desempregados e as minorias étnicas, torna-se relevante refletir sobre a arte como trabalho do ser social, visto que a arte pode ser pensada como produção mediadora de processos emancipatórios, ao enfoque da crítica ontológica. Numa leitura de György Lukács, tal crítica abrange aspectos intrínsecos e extrínsecos à produção artística. E, das categorias instrumentalizadas por esse filósofo, menciono neste texto: o símbolo, por trazer o geral ao particular; a catarse por abranger a empatia; o complexo, como amplitude da totalidade; a mimese, como referencial dialético.
Despertou-me para tal enfoque a arte de Walter Miranda, a partir de duas mostras realizadas em São Paulo, em 2018 e 2020, referendando os Direitos Humanos. Em ambas as mostras, a tessitura do espaço produz tensões por meio do estranhamento, a “provocar na sociedade novos fatos ontológicos” [i], porque a criação artística se articula com o complexo sócio-histórico:
Para compreender a especificidade do ser social é preciso compreender e ter presente essa duplicidade: a simultânea dependência e independência de seus produtos específicos em relação aos atos individuais que, no plano imediato, fazem com que eles surjam e prossigam.[ii]
Tais dependência e independência subsomem a relação entre o indivíduo e o real. Entretanto, as categorias poéticas não se fundam na natureza, nem na sociedade. Por isso a crítica ontológica se pergunta pela peculiaridade do poético numa relação sócio-histórica com o fruidor, aos desdobramentos da poiesis. A poiesis se relaciona ao fazer, que se inicia no trabalho da matéria, e se completa na fruição, por meio da catarse. Tal dinâmica, envolvendo um complexo de determinações do real, explicita diferenças, antíteses e dados circunscritos ao trabalho artístico. Ao fruidor é dado captar contradições a serem superadas.
Na arte de Walter Miranda, as qualidades do espaço tangenciam o campo sensorial e o campo ideativo, despertando a pergunta drummondiana: “E, agora, José?”. Ao perscrutar o espaço nas mostras intituladas Cartografias de Gaia[iii] e Ode à vida[iv], ambas disponíveis em catálogo virtual, enfatizei três ordens de estranhamento: heterotopias, seriações e desconstruções da geometria.
Em Cartografias de Gaia, o artista aborda a importância da sustentabilidade ecológica em oposição aos danos causados pelo uso descontrolado das tecnologias. Walter Miranda reuniu quadros, objetos, instalação e performance que enfocam o mapa-múndi. Em Cartografias de Gaia, as heterotopias determinam-se como aglomerações de produtos de origem animal, vegetal e inorgânica: chaves; CDs; fósforos; aparas de lápis; autofalantes; conchas; sementes; cartões de crédito; invólucros de agulhas de acupuntura; relógios; peças de vidro, inclusive vidro moído, etc, misturados à pintura. Aparentemente, as heterotopias tornam o espaço impensável e inominável. Mas é esse o telos desse estranhamento: chegar ao inusitado para realizar a simbologia da vida.
Nos quadros, o artista também definiu estranhamento relativo ao contorno. Em meio a invenções cartográficas, destaque-se a América do Sul posicionada ao Norte, em Avesso do avesso, num mapa mostrado em espelho. As várias peças tridimensionais são igualmente compostas e ou revestidas por heterotopias. Entre elas, há uma Torre de Babel feita de teclados de computador. Destaco também três peças feitas com placas de computador: Livro de Gaia I, Livro de Gaia II e Livro do Porto, sendo o texto sugerido por objetos de tamanho pequeno. Em meio a tais peças, o artista incluiu uma instalação e uma performance com a mesma temática questionadora dos ditames do capitalismo financeiro.
Livro do Porto (2018) -27 cm x 31 cm x 7 cm
Nesse conjunto de trabalhos, contrastam cores claras e lúgubres, na metáfora da oposição “vida x morte”. E, sob vários aspectos, muitas imagens exaltam a vida nascente. Como exemplo, surge luminoso azul, pronto à fecundação da vida num grande mapa-múndi cercado de mouses e teclados, em Fecundationis Artificiosae (2018), enquanto, em América do Sul (2007), as heterotopias pedem decifrações simbólicas, despertando a consciência atuante.
América do Sul (2007) – 83 cm x 88 cm
Em Ode à vida, em releitura da sua produção artística concebida a partir de 1977, o artista organizou núcleos temáticos igualmente relacionados aos Direitos Humanos, transparecendo nos títulos: Vidas negras importam; Ser e não ter, ter e não ser: eis a Etiópia; Simetria ecológica, social e política. Nessa mostra, em muitos trabalhos localizam-se também as referidas heterotopias. Passo então à análise de duas outras instâncias técnico-expressivas muito significativas na arte de Walter Miranda: as seriações e as desconstruções da geometria.
As seriações definem-se pela repetição de imagens semelhantes ou iguais, num mesmo trabalho, ou num conjunto de trabalhos, mas podem surgir também como conjunto de imagens diversificadas dentro de um núcleo temático. À análise das seriações, escolhi 1984: O estigma de George Orwell I e VIII, pertencentes a um conjunto de quadros a óleo sobre papelão, em que o estranhamento resulta das repetições de motivos semelhantes.
Era 1949. No romance chamado 1984, de George Orwell, o Big Brother passou a controlar corpos e mentes. Em 1983, numa transitividade do literário ao pictórico, Walter Miranda realizou 1984: O Estigma de George Orwell. E, neste ano de 2020, tais quadros atualizam a mimese do real e de seus espaços reais.
1984: O estigma de George Orwell I (1983) – 88 cm x 62,5 cm
1984: O estigma de George Orwell VIII (1983) - 88 cm x 62,5 cm
Nesse conjunto de quadros, pessoas de ambos os sexos, e rostos angulosos quase indiferenciados, remetem o visitante aos algoritmos e senhas que nos carimbam virtualmente. Andando pelas ruas, todos passam por inscrições indecifráveis: carestia, fome, recessão, FMI, etc. A marcha mecânica lhes é imposta, tal se faz com o gado no matadouro. Em 1984, o fruidor pressente a reificação do humano. Ali estão o treinamento e a disciplina herdados do taylorismo e do fordismo, passando pelo toyotismo e, hoje, pela uberização, que se aperfeiçoa pelas novas tecnologias.
Walter Miranda não pintou o trabalhador na fábrica, nem no supermercado, nem no banco. Mas, ao modo do não dito na poesia, o não pintado instaura imagens e sentidos simbólicos. Ali está a classe trabalhadora, antes e hoje. Ainda na linha das seriações, aqui destaco dois quadros-objeto: pertencentes ao núcleo denominado Vidas negras importam, Cloroquina, o pão nosso de cada dia I e Cloroquina, o pão nosso de cada dia II, realizados em 2020, tematizam a violência do biopoder a serviço da destruição da vida.
Em Ode à Vida surge outra forma de estranhamento: as desconstruções da geometria. Em Bosh + 500 – Juízo final, óleo, objetos, tela sobre madeira, numa interpretação da imagística de Hieronymus Bosh, no tríptico de Walter Miranda, o Juízo Final transcorre entre efeitos da destruição ambiental e das hierarquias sociopolíticas, que submetem os povos ao poder da moeda, numa versão atual dos suplícios imaginados por Bosh: fogueiras mortais; incêndios climáticos; explosões atômicas, fome, miséria, povos em fuga. Entre ameaças, a Terra e os humanos convivem com imagens enigmáticas: astros, maçã, aves, avião, figuração da Justiça, pássaros, homem sem cabeça, entre outras figurações do realismo encantatório.
Bosh + 500 – Juízo Final (2016) – 73cm x 58 cm
Frequentes no trabalho de Walter Miranda, as desconstruções da geometria mostram desdobramentos da poiesis, trazendo o ser de razão ao mundo sensível, numa passagem da ciência à arte. E assim, a espacialidade geométrica adquire densidade, profundidade, flexões, planos reversíveis, movimento, ao que se somam as mutações da cor e da luz. O colorido transforma a neutralidade do espaço geométrico, tornando-o palco dos acontecimentos do mundo e vereda de contradições a serem superadas. E a Terra se recria entre símbolos do caos em busca da decifração, que se inicia na desconstrução da razão monológica e prossegue desguardando fronteiras para inconter limites. E uma criança deitada de bruços chama o visitante. Pela catarse, o fruidor deseja que a criança respire. E consegue reanimá-la. A práxis é possível.
Não foi por acaso que, em Ode à vida, Walter Miranda incluiu as Transposições Sinfônicas, seriações realizadas ao som das sinfonias de Beethoven, revivendo no Romantismo o ímpeto libertário do ser social.
Referendando no pensamento de Lukács a aproximação entre Estética e da Ética, a crítica ontológica se ocupa da transição da técnica à arte. Nesse trânsito, em minha análise da arte de Walter Miranda, reenfatizo a relevância do estranhamento espacial. As heterotopias englobam oposições e mesclas, tornando possível realizar o irrealizável. As seriações sugerem releituras dos caminhos da repetição e da reprodução, buscando alternativas de ordem dialética a partir da mimese. E, sob o ângulo das desconstruções da geometria, viabiliza-se a passagem da teoria ao sentimento, favorecendo a catarse, que acolhe o outro na sua completude e antropomorfiza o espaço.
Nessa convergência de instâncias técnico-expressivas há tensões imagísticas, entrecruzando franjas dos espaços poético, físico e social. Assim, na arte de Walter Miranda, referência aos Direitos Humanos transparece numa articulação do universal e do particular, exaltando a vida nos transcursos do lírico ao trágico e vice-versa. Em ambas as mostras, a oposição fundamental “vida x morte” se envolve no simbolismo do luminoso e do soturno, intensificando outras tensões que se acentuam pelas texturas. Note-se, ainda, que muitas imagens tangenciam o conceitual, ao perpassarem oposições que enfocam antropomorfização x fetichização.
Para sintetizar minha visitação a esse conjunto de trabalhos, vislumbro a vida ante a práxis do trabalho da mão sonhadora. A essa dádiva, acrescento: a mão que atua no processo artístico é diversa da mão que aperfeiçoa sapatos de sola vermelha, na linha dos valores de uso e de troca. A mão sonhadora resiste. E inventa o corpo sonhador.
Na arte de Walter Miranda, o corpo sonhador se reconhece nas figurações do homem vitruviano inserido em vários trabalhos. Expandindo braços e pernas, ele simboliza a espécie humana: macho e fêmea atuantes no tecido poético. Eles ultrapassam limites geométricos. Suas silhuetas dançam, para vencer a morte antecipada.
Referências bibliográficas
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer, Nélio Schneider. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
MIRANDA, Walter. Cartografias de Gaia. São Paulo: FWM, 2018.
............................. Ode à vida. São Paulo: FWM, 2020.
[i] LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer, Nélio Schneider. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 27.
[ii] Ibidem, p.345.
[iii] Cf. MIRANDA, Walter. Cartografias de Gaia. São Paulo: FWM, 2018.
[iv]Cf. Idem. Ode à vida. São Paulo: FWM, 2020.
Admirável Nova Idade Média
Como já escrevi anteriormente, tenho expressado através de meus trabalhos as questões do cotidiano que me afligem conceitual e ideologicamente. Assim foi com as séries 1984 – O Estigma de George Orwell, Admirável Mundo Novo e Projeto Seattle, entre outras, onde utilizei peças de computadores e objetos do cotidiano incorporados à tradicional técnica da pintura a óleo. Dessa forma, a razão de existência desta exposição não poderia ser diferente.
Desde os anos 80, ao analisar as atitudes humanas em nossa época e tentar entender sua trajetória através de comparações com o passado, por meio de estudos pessoais da história humana, deparei-me com um forte paralelo na história: a Idade Média.
Todo o sentido de violência, insegurança, solidão, desespero social, riscos de epidemias, controle religioso, relações profissionais, deslocamento espacial, dependência do governo, injustiças sociais, angústias pessoais etc., que ocorrem atualmente, têm, a meu ver, certa similaridade com aquele período histórico.
Daí nasceu esta nova série de trabalhos Admirável Nova Idade Média, onde a intenção maior é provocar no espectador reflexões sobre o presente e o futuro usando as experiências do passado em uma abordagem análoga ao cíclico espaço tempo continuum, embora eu imagine que o tempo não deva ser representado exatamente por um círculo, mas por uma espiral (muito mais dinâmica, como é a vida), que tem algumas características aparentemente cíclicas, porque nasce em um ponto e cresce continuamente passando sempre pelos mesmos quadrantes que provocam certas similaridades porém sem se repetir.
O termo "Admirável" é derivado da série de quadros pintados por mim, baseados no livro Admirável Mundo Novo do escritor Aldoux Huxley.
Voltando ao paralelo histórico mencionado acima, sabemos que na Idade Média, o deslocamento das pessoas de uma região para outra era muito lento, pois o meio de locomoção mais veloz era realizado por meio de cavalos. Hoje a velocidade do deslocamento nas grandes cidades chega aos mesmos parâmetros da Idade Média devido aos congestionamentos (dentro das cidades, demoramos o mesmo tempo que na Idade Média para nos deslocarmos 20 quilômetros, por exemplo).
Assim como na Idade Média havia uma estrutura informal de comércio e prestação de serviços, atualmente a economia informal vem se fortalecendo nas grandes cidades. Havia pessoas que contratavam os serviços de artesãos deixando a matéria-prima em suas casas e passando periodicamente para retirar o produto acabado. Hoje, muitas empresas terceirizam suas atividades fornecendo matéria-prima a pessoas contratadas para executar o serviço em suas próprias casas e devolver na forma de artigos manufaturados. Outras empresas contratam profissionais autônomos para realizar serviços de entrega e transporte, a conhecida uberização. Além disso, com o avanço da informática, muitos profissionais liberais e executivos têm mantido seus escritórios em casa e usam os meios eletrônicos para enviar seus serviços às empresas, o chamado home office.
Na Idade Média, as cidades eram rodeadas de altos muros e portões, que eram fechados à noite, a fim de se proteger de ataques externos. No topo desses muros e portões ficavam a postos arqueiros vigiando a aproximação de possíveis inimigos. Como paralelo, temos hoje, os condomínios fechados ou mesmo áreas comerciais e residenciais, onde empresas de vigilantes são contratadas com a mesma finalidade de outrora. Assim, homens armados vigiam a entrada e o entorno dos conjuntos residenciais e se comunicam por meio de walk talkies.
Também os caminhos eram extremamente perigosos, assim como determinadas ruas nas grandes cidades de hoje, e a formação labiríntica das ruas em favelas e regiões pobres, não difere muito das condições de moradia na Idade Média. Também o saneamento básico era precário como em vários países hoje em dia.
Na época em que pintei os trabalhos dessa série, o risco de graves epidemias já era uma preocupação para algumas autoridades sanitárias mundiais, devido às facilidades com que os vírus e bactérias podem ser transmitidos. Isto tem gerado as mesmas preocupações que havia na Idade Média com as pestes, agora concretizadas com a atual pandemia do Covid-19.
A disseminação atual de religiões e a manipulação espiritual por meio delas, não tem sido muito diferente do maniqueísmo praticado por líderes religiosos na Idade Média. Da mesma forma, a proximidade do final do segundo milênio provocou várias previsões catastrofistas similares às do final do primeiro milênio e associadas ao do final do mundo.Não bastassem essas questões, durante a Idade Média, existia também uma perseguição religiosa de caráter violento e aquerrido que se repete hoje em dia com muita frequência e onipresença.
Assim como na Idade Média, as cidades de hoje são verdadeiros centros de novas ideias, tecnologias e poder, onde os governantes geralmente são prepotentes e mantêm-se isolados da população. Entretanto, a Idade Média não foi exatamente uma era de obscurantismo como muitos pensam e, talvez, a nossa era também não seja tão negra quanto alguns pessimistas apregoam. Nesse sentido, alguns acreditam que estamos no limiar de uma nova era. Se essa crença for real, esperemos que a Nova Renascença não demore a chegar, já que tudo tem evoluído e se modificado com extrema rapidez em nossos tempos (provavelmente, aconteceu mais eventos significativos no século XX do que em toda a história da humanidade).
Com tudo isso, a Nova Idade Média que vivemos hoje, apesar de suas dicotomias, parece-me tão admirável quanto a vivida por nossos antepassados, sendo que isso me animou a continuar expressando minhas desilusões e esperanças por meio da reutilização lógica e lúdica de resíduos do nosso cotidiano tecnológico contrapostos a elementos representativos da Idade Média.
Ao respeitar a persistente recorrência no uso de alguns elementos simbólicos, tais como a imagem do planeta Terra, sementes e folhas, bem como imagens de bailarinos (usados em outras séries de trabalhos), procuro expressar a situação de desequilíbrio existencial do homem em relação ao planeta, hoje em dia. Dessa forma, procuro criar uma analogia, através do contraponto entre os elementos referentes à Idade Média e os elementos representativos da contemporaneidade.
A composição construtivista dos quadros por meio da Proporção Áurea, usada em suas dimensões, gera planos pictóricos conseguidos por meio de texturas e sobreposições de tintas em camadas espirradas, enrugadas e pinceladas abstratas e gestuais. Porém, esses planos geométricos rígidos são atenuados com o uso das linhas elegantes e orgânicas da espiral logarítmica (para mim associadas ao ritmo da vida e do tempo) e com o uso de harmonias cromáticas resultantes de extensa pesquisa sobre a cor.
O resultado, creio, é formado por obras pictóricas contemporâneas não convencionais, onde o universo simbólico exerce grande força visual no espectador.
Walter Miranda – 1998/2022
Janela Nossa de Cada Dia
Técnica: Óleo sobre madeira
Dimensões: 100 X 60cm
Ano: 1987-2020
A Série Janela Nossa de Cada Dia apresenta três pares de questões filosóficas: Tecnologia versus Natureza; a Condição Humana versus a Compreensão da Infinitude e Ideologia versus Violência.
São três trabalhos pintados sobre madeira e que são articuláveis porque as folhas das janelas podem ser abertas ou fechadas.
Quadro 1 – Contraposição do uso da tecnologia, representada pelo ônibus espacial, em detrimento da proteção à natureza, representada por uma floresta sendo penetrada por uma estrada.
Quadro 2 – Contraposição da condição básica do ser humano, representada pela fome, e a infinitude do universo do qual somos apenas uma ínfima parte dos desígnios de Gaia, a mãe Terra.
Quadro 3 – Contraposição da busca humana pela liberdade, representada pela mão da estátua da liberdade, e o uso da violência para atingir nossos objetivos, representado pelo cogumelo atômico.
Walter Miranda - 1987/2020
SER E NÃO TER, TER E NÃO SER, EIS A ETIÓPIA!
Em 1985, a Etiópia passou por uma crise social gravíssima com milhares de habitantes morrendo de fome. Tocado por essa tragédia, pintei três quadros expressando a minha indignação e, inspirado em Shakespeare, usei como título para a série a frase Ser e não ter, ter e não ser, eis a Etiópia!
Parece-me que hoje, a Etiópia superou a crise de 85 e está em desenvolvimento social e humano. Apesar de ainda existirem problemas sociais e políticos, o país reconquistou a dignidade que todo povo merece ter.
Entretanto, em outras regiões do planeta, ainda existem povos e populações que vivem o drama de não ter o essencial para a sobrevivência enquanto outros desperdiçam, sem a menor preocupação com seu semelhante, apenas porque estes se encontram a milhares de quilômetros de distância.
QUADRO 1 – A essência humana (representada pela criança) deveria valer mais que as convenções territoriais que dividem a nossa espécie. É exatamente isto o que tentei transmitir nesse quadro, onde a estrela representa o transcendental e a Terra o material, tendo como base filosófica o conceitualismo hipócrita dos quintais embandeirados. Nesse tipo de sistema mundial, o ser humano encontra-se sobre uma balança apoiada em um mundo envolto pela tecnologia usada desmesuradamente.
QUADRO 2 – Os sistemas políticos, econômicos e religiosos mundiais, representados pelas bandeiras pintadas, têm a maior parcela de responsabilidade pela desigualdade da condição humana, já que eles têm suficiente poder de influência para alterar essa situação. Por isso, a vida humana encontra-se dentro de uma grade cuja base é sustentada por algumas bandeiras apoiadas sobre placas eletrônicas representativas das ferramentas tecnológicas em cujo seio encontram-se exemplos de injustiças e violências contra refugiados vítimas da opressão e repugnância dos mais abastados.
QUADRO 3 – A criança representa, nesse caso, todos os povos explorados que sustentam, com seu sangue e sacrifício, os países desenvolvidos e ricos. A tentativa sôfrega e vã de tentar sugar um pouco de vida é desviada para o sustento de uma opulência que se justifica por meio de conceitos e convenções econômicas.
MULHERES PINTORAS ATRAVÉS DOS TEMPOS - PRÉ-HISTÓRIA ATÉ IDADE MÉDIA
Neste artigo procuro demonstrar a importância da atuação das mulheres na sociedade através dos tempos abordando sua atuação profissional e, consequentemente social, por meio das artes plásticas, em específico no exercício da pintura. É surpreendente notar que, em geral, os livros de história da arte não incluem a atuação das mulheres até, pelo menos, a primeira metade do século XIX. Entretanto, é preciso considerar que, se a partir da segunda metade do século XIX sua participação passa a ser evidente, isso se dá devido à luta empreendida por elas em busca de justiça social, reconhecimento profissional, direitos civis e igualdade de gênero.
Neste artigo procuro demonstrar a importância da atuação das mulheres na sociedade através dos tempos abordando sua atuação profissional e, consequentemente social, por meio das artes plásticas, em específico no exercício da pintura. É surpreendente notar que, em geral, os livros de história da arte não incluem a atuação das mulheres até, pelo menos, a primeira metade do século XIX. Entretanto, é preciso considerar que, se a partir da segunda metade do século XIX sua participação passa a ser evidente, isso se dá devido à luta empreendida por elas em busca de justiça social, reconhecimento profissional, direitos civis e igualdade de gênero.
CARTOGRAFIAS DE GAIA por Walter Miranda
Desde os anos 1980, a temática ecológica tem sido constante em minha produção artística, assim como a incorporação de placas de computadores e outros acessórios do nosso cotidiano tecnológico. A série de trabalhos denominada “CARTOGRAFIAS DE GAIA” apresenta obras que reproduzem diversas projeções cartográficas para tratar da situação atual de degradação ambiental no planeta. A degradação planetária, provocada pelas ações do ser humano ávido por enriquecimento imediato, conforto material desmesurado e pela presunção de que, com a tecnologia, podemos dominar a natureza.
Os trabalhos bi e tridimensionais foram realizados por meio da utilização da tradicional técnica da pintura a óleo e da incorporação de objetos descartados pela sociedade contemporânea. A utilização conjunta desses dois fatores aparentemente antagônicos (tradição e contemporaneidade) gera o desafio compositivo de obter uma harmonização visual durante o processo criativo de cada trabalho que, quando concluído, provoca no observador reflexões filosóficas sobre a poluição do meio ambiente e o consequente declínio da qualidade de vida do homem no planeta.
O suporte para os trabalhos são a madeira, objetos de plástico, esfera de alumínio e a tradicional tela. Nos suportes foram incorporados objetos descartados pela sociedade contemporânea, tais como: placas de computador (serradas e esmerilhadas ou em pedaços e cacos), componentes eletrônicos (processadores, chips, alto-falantes, diodos, capacitores e resistores), teclados de computador, cartões de crédito, balas de revólver, moedores de carne, balanças, chaves, cadeados, relógios e cúpulas de relógios, filme plástico de PVC (poli cloreto de vinila), canudos e presilhas de agulhas para acupuntura, bijuterias, moedas, palitos de fósforo queimados, cascas de lápis apontados, farelos de borracha, cacos de vidro etc. Também incorporei elementos da natureza, tais como: sementes, conchas, caracóis, terra, areia, pedras, casco de tatu etc.
Todos os componentes que eu usei foram colocados de acordo com um planejamento de ordem estética a fim de criar texturas e efeitos visuais peculiares que provocam a curiosidade do espectador. Em alguns quadros, pintei de forma realista (como detalhe) o mapa da região apresentada no quadro inteiro a fim de criar um elo que fecha o quadro em si mesmo, ou seja: o quadro é um detalhe dele mesmo e um detalhe dele é o quadro todo.
Cartografias de Gaia tem um total de 44 obras em que utilizei a interpretação artística de projeções cartográficas da seguinte forma:
OBRAS BIDIMENSIONAIS
• 1 painel medindo 2,5mX2,5m foi feito com placas de circuito impresso, teclados de computador e mouses;
o Ele representa a importância extrema que o homem dá ao uso da tecnologia atualmente. Por isso, a terra é representada como um óvulo, cuja camada de proteção é composta por teclados de computador e os espermatozoides que tentam penetrar o óvulo são representados por mouses;
• 5 quadros em formatos cartográficos ovais, semicirculares ou multiformes apresentam todas as regiões do planeta.
o Esses trabalhos foram preenchidos com cartões de crédito (símbolo do consumismo desenfreado); chaves (símbolo de abertura ou encerramento de caminhos humanos), placas de computador (símbolo da tecnologia atual), diversos CDs (que representam a brilhante e aparente riqueza proporcionada pela tecnologia atual), canudos e presilhas de acupuntura, mini interruptores eletrônicos, diodos, resistores e capacitores eletrônicos etc.
o Um dos quadros foi feito com 30.000 diodos eletrônicos + 2.500 canudos e 1.600 presilhas de agulhas de acupuntura + 500 capacitores e 400 resistores eletrônicos. Ele também apresenta as cinco ilhas de resíduos plásticos que flutuam de forma concentrada em algumas partes dos oceanos.
• 3 quadros ovais com o mapa-múndi representam a evolução dos continentes durante as eras geológicas .
o Eles representam a progressão da poluição tecnológica gerada pelos humanos ao longo do tempo, pois os trabalhos estabelecem um paralelo evolutivo desde os primórdios das civilizações, quando o homem se espalhou pelo planeta usando materiais naturais para conquistar o meio ambiente, até os dias de hoje, em que o homem está poluindo o planeta de forma inimaginável. Os quadros foram preenchidos com sementes de goiaba, lascas de lápis apontados e resíduos de placas eletrônicas, plásticos, metais etc.;
• 2 quadros apresentam as formas dos primeiros mapas-múndi, criados em 1507, onde aparece pela primeira vez a representação das Américas.
o Um deles foi preenchido com placas de circuito eletrônico, sementes de goiaba e presilhas de agulhas de acupuntura; e outro foi preenchido com lascas de lápis apontados, que representam o desmatamento europeu no século XVI.
• 6 quadros circulares representam regiões do planeta preenchidas com restos de objetos que se relacionam com as características de cada região, a fim de representar a poluição causada pelo consumo excessivo de materiais processados pela indústria atual.
o Na América do Sul, usei palitos de fósforo para representar as queimadas florestais;
o Na Europa, usei pequenos pedaços de placas de computador para montar um mosaico visual representativo das diversas minirregiões que compõem o continente;
o Na África, usei a areia devido à influência marcante do Saara, bem como da seca em diversas regiões daquele continente;
o Na América do Norte, usei diversos chips e processadores de computador para representar a característica da sociedade tecnológica local;
o Na Ásia, usei cascas de lápis apontados para representar a cultura manual que ainda hoje se mantém imperativa na região;
o Na Oceania, usei detritos de placas de computador para representar a dominante produção industrial na região e que tem suprido o mercado mundial de bens eletrônicos;
Ao fundo de alguns quadros, pintei mãos e pés (que representam a ocupação humana do planeta). Em outros, manuscrevi um texto, que segue padrões lineares compositivos específicos de cada trabalho. Este texto, Carta do Chefe Seattle, é conhecido mundialmente e tem uma história muito curiosa: O chefe indígena norte-americano Seattle fez um discurso, em 1855, durante um tratado de paz em que as terras indígenas foram vendidas em troca de uma reserva. Esse discurso foi presenciado por um admirador seu, Henry A. Smith, que o publicou em um jornal local em 1887, baseado em suas lembranças sobre o discurso. Em 1971, o discurso sofreu alterações feitas pelo roteirista, Ted Perry, para um documentário sobre ecologia. A partir daí, o texto passou a ser conhecido mundialmente como a carta resposta do Chefe Seattle ao presidente norte-americano Franklin Pearce. Embora, a autoria seja ambivalente, essa comunhão de textos, a meu ver, apresenta uma mensagem, que se torna cada vez mais atual, para a humanidade. Por isso, resolvi incluí-la em parte desta série de trabalhos. Os interessados na íntegra do texto podem acessá-lo em meu site: http://www.fwmartes.com.br/imprensa/114/carta-do-chefe-seattle
• 2 quadros circulares apresentam os polos terrestres;
o Na Antártida usei detritos de componentes eletrônicos para representar as marcas da ocupação humana e científica no continente ainda pouco explorado;
o No Ártico também usei cascas de lápis apontados, porém sujas com tinta e óleo, para representar as marcas da poluição humana no continente pouco habitado.
• 1 quadro circular representa todos os continentes vistos simultaneamente e preenchidos com pedaços de placas de computador completamente sujas com óleo industrial (outro símbolo da poluição tecnológica).
• 1 quadro circular, pintado em cores soturnas, representa a imagem do planeta sem água;
o No quadro “Sem Água”, usei uma mistura dos rejeitos que usei nos demais quadros para representar os continentes e que, incorporados à pintura a óleo, transformam-se em uma representação dramática de uma imagem captada por meio de radar e divulgada pela Agencia Espacial Europeia, do que seria a Terra sem a água. Essa imagem está sobreposta a um círculo preenchido com cacos de vidros mostrando os limites da água, que gera a forma arredondada do planeta, incutida em nosso inconsciente coletivo.
• 3 quadros com cartografias extravagantes apresentam mapa-múndi preenchido com mini botões eletrônicos de pressão, sementes de goiaba e presilhas de agulhas de acupuntura;
o Dois deles têm a forma losangular, sendo que os oceanos foram feitos em alto relevo usando serragem de placas de circuito impresso e detritos de componentes eletrônicos e as áreas do Ártico e da Antártida foram preenchidas com presilhas de agulhas de acupuntura. Um deles tem os continentes preenchidos com 5.000 mini botões eletrônicos de pressão e presilhas para agulhas de acupuntura.
o O terceiro quadro tem a forma análoga a um coração, reproduzindo uma das diversas projeções cartográficas que existem.
• 2 quadros apresentam mapa-múndi de ponta cabeça.
o Trata-se de uma homenagem ao pintor uruguaio Joaquim Torres Garcia que, na primeira metade do século passado, postulou uma nova forma de ver o mundo sem o ponto de vista convencional usado pela cultura ocidental.
• 1 quadro oval apresenta o mapa-múndi pintado de forma inversa, como se o observador da obra estivesse dentro do quadro observando os espectadores do trabalho;
• 1 quadro oval, apresenta o mapa-múndi “deitado”;
• 1 quadro circular bilateral (frente e verso) representa a real natureza e beleza do planeta;
• 1 quadro retangular feito de retalhos de madeira, pequenas placas de computadores e canudos de acupuntura recortados, representam a beleza visual da poluição atmosférica;
• 3 quadros retangulares apresentam a Terra recortada vertical, diagonal e horizontalmente aludindo ao desequilíbrio ambiental e o descompasso entre o uso da tecnologia e a integração com o planeta de forma sustentável.
• 2 quadros ovais apresentam a África e a América do Sul em evidência e os demais continentes de forma facetada;
o A África e a América estão centralizadas e pintadas de forma realista e os demais continentes estão geometricamente facetados. Assim, a parte central é vista de forma natural e as laterais como se fossem as faces de um diamante para representar o planeta visto por um prisma e como uma pequena joia imersa na infinitude do universo.
OBRAS TRIDIMENSIONAIS
• 1 objeto modular montado em forma de torre, feito com teclados de computadores;
o A base do objeto tem a forma octogonal, o primeiro módulo tem a forma hexagonal, o segundo módulo tem a forma pentagonal, o terceiro módulo tem a forma quadrática, o quarto módulo tem a forma triangular e a parte superior é composta por uma esfera.
• 3 “Livros de Gaia”, cujas páginas são placas de computador + objetos, contam o processo do desenvolvimento tecnológico humano e sua relação com o planeta, Gaia.
• 2 objetos, “A Máquina do Juízo final” e “O Equilíbrio Vital”, foram executados a partir do reaproveitamento de um moedor de carne e uma balança.
o O primeiro apresenta a Terra sendo moída em um moedor de carne, e o segundo apresenta a Terra em uma balança enquanto um homem avalia o Sol e a Lua. Ambos representam a coisificação da natureza e de valores filosóficos universais transformando-os em meros valores materiais.
• 2 objetos tridimensionais que apresentam a Terra em forma de ovo acoplada sobre placas de computador abordam as questões ecológicas que podem afetar o equilíbrio climático no planeta.
• 1 objeto em forma sextavada representa o lixo eletrônico despejado ao redor do planeta.
INSTALAÇÃO
• 1 instalação composta de 1 quadro circular e bilateral com imagem do planeta pintada na frente e no verso; imagens digitalizadas; 38.000 botões eletrônicos de pressão; acetato de contato para teclados; marcadores eletrônicos de tempo; globo de plástico; tampo de monitor e seringa subcutânea abdominal.
PERFORMANCE
• 1 performance em que é abordada a grave situação ecológica em que o planeta se encontra devido às ações humanas. A peça tem duração de vinte minutos e conta com a participação do grupo “Suspiro na Arte”. Nela é apresentada a venda fictícia do planeta Terra por um empresário superpoderoso e que não se importa com as injustiças sociais e econômicas existente entre os países.
Em consonância com os quadros expostos, a ideia essencial da instalação e da performance é demonstrar a finitude do planeta Terra e lembrar que o peso das nossas ações coloca em risco o próprio planeta e as nossas vidas.
Finalmente, cabe dizer que esta série de trabalhos, em que uso o mapa-múndi para expressar minhas preocupações atuais enfatiza meu “modus operandi”, já que em toda a minha produção artística, procuro sempre unir a razão à emoção (base de meu processo criativo) a fim de criar uma obra que faz uso de técnicas tradicionais incorporadas a elementos da sociedade atual para estabelecer diversas relações metonímicas que provocam questionamentos no espectador. Nesse sentido, a linguagem subjetiva que uso para expressar meus sentimentos, anseios, ideias e conceitos filosóficos possibilita que o observador tire suas próprias conclusões sobre o tema abordado em cada série de trabalho. O resultado é a cumplicidade ou a negação, não importa. Ambas formam um tipo de envolvimento que remetem à essência do que tento transmitir.
Walter Miranda - agosto/2019
Confúcio e as Cinco Virtudes do Homem Sábio
A UNESP, Universidade do Estado de São Paulo, por meio de parceria com o Instituto Confúcio, convidou 15 artistas para participar do projeto De Olho na China. Cada artista recebeu um exemplar do livro Os Analectos, para ler e criar um trabalho baseado nos ensinamentos de Confúcio.
Ao ler o livro percebi que Confúcio se baseia em três temas (estudo, amizade e homem nobre) e que cinco fatores são constantes no sistema cognitivo de seus ensinamentos, a saber:
5 elementos: metal, água, madeira, fogo e terra.
5 cores: branco, preto, verde, vermelho e amarelo.
5 qualidades humanas: gentil, bondoso, cortês, frugal e humilde.
5 órgãos: pulmão, rins, fígado, coração e baço.
5 emoções: tristeza, medo, irritabilidade, alegria e ansiedade, reflexão e preocupação.
Curiosamente, os elementos estão correlacionados com as cores: metal = branco; água = preto; madeira = verde azulado; fogo = vermelho e terra = amarelo.
Tendo este princípio numérico em mente, idealizei uma composição geométrica utilizando retângulos e triângulos que atuam como elementos estéticos e se repetem sempre na mesma quantidade. Estes retângulos e triângulos servem de base para incorporar placas de computador, ideogramas chineses representando as cinco emoções abordadas por Confúcio e referências visuais relativas aos elementos da natureza; cores principais; qualidades humanas etc.
Além de conceitos chineses também incorporei ao trabalho conceitos ocidentais que costumo usar normalmente em meus quadros. Por isso, em cada retângulo, usei silhuetas de bailarinos que direcionam o olhar do espectador para alguns elementos visuais presentes em cada parte do quadro e no centro dele inclui uma silhueta, que lembra o homem vitruviano. Nele acrescentei um sexto ideograma que pode ser traduzido como “sábio e homem inteligente”.
Na base do quadro coloquei a silhueta de um computador, duas mãos segurando uma pena e um lápis, e incorporei uma caneta, numa alusão de que todas as qualidades humanas abordadas por Confúcio dependem exclusivamente da educação, não importa a época.
Na parte superior do quadro coloquei as imagens pintadas do planeta Terra, da Lua e do Sol, uma tríade que acompanha meus trabalhos há muito tempo e procura demonstrar que, acima de tudo, fazemos parte de um sistema extremamente harmonioso e equilibrado e superior às nossas pretensões de domínio da natureza.
Técnica: Óleo + objetos sobre madeira.
Dimensões: 73 cm X 69,5cm
Ano: 2016
Walter Miranda -2016
Os Infinitos Universos de Giordano Bruno
Esse trabalho é uma homenagem a Giordano Bruno (1548-1600), um teólogo Italiano, filósofo, escritor, matemático, poeta e frade dominicano.
Ele defendeu diversas teses consideradas apócrifas porque desafiava dogmas da igreja católica. Também defendeu a ideia de que o universo, cujo centro dependeria sempre do observador, era infinito; que as estrelas eram outros sóis cercados por planetas que poderiam ter vida da mesma forma que a Terra. Giordano morreu queimado na fogueira por causa de suas ideias e pregações.
Segue abaixo alguns extratos do texto “Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos” escrito por Giordano Bruno e usados para compor esse trabalho:
Pag. 16 – Movimento retilíneo não convém à terra ou a outros corpos principais, nem lhes pode ser natural, mas o é das partes destes corpos que para eles se movem dos vários e diferentes locais do espaço, sempre que não estejam muito afastados. Sexto axioma
Pag. 16 – Se estabelece que os corpos e suas partes não têm uma posição determinada em cima ou embaixo, a não ser enquanto a discussão se desenvolve aqui ou acolá. Nono axioma.
Pág. 18 – Enquanto considerarmos mais profundamente o ser e a substancia daquilo em que somos imutáveis, ficaremos cientes de que não existe a morte, não só para nós como também para qualquer substancia, enquanto nada diminui substancialmente, mas tudo, deslizando pelo espaço infinito, muda de aparência.
Pág. 19 – Deus não é glorificado em um só, mas em inumeráveis sóis; não numa terra, num mundo, mas em um milhão, quero dizer em infinitos.
Pág. 22 – Sentidos sevem somente para explicar a razão, para tomar conhecimento, indicar e dar testemunho parcial, não para testemunhar sobre tudo, nem para julgar, nem para condenar. Porque nunca, mesmo perfeitos, são isentos de alguma perturbação. Por isso a verdade, em pequena parte, brota desse fraco princípio que são os sentidos, mas não reside neles.
Pág. 27 – Eu considero o universo “todo infinito” porque não possui limite, nem termo, nem superfície; digo não ser o universo “totalmente infinito” porque cada parte que dele possamos pegar é finita, e cada um dos inúmeros mundos que contém é finito
Pág. 34 – Daí afirmarem que, como não é carne aquilo que não é vulnerável, assim não é corpo aquilo que não resiste..... Desta forma dizemos existir um infinito, isto é, uma etérea região imensa, na qual existem inúmeros e infinitos corpos, como a terra, o sol, a lua, que são chamados por nós de mundos compostos de pleno e vácuo: porque este espírito, este ar, este éter, não estão somente à volta destes corpos, mas ainda os penetram e estão ínsitos em todas as coisas.
Pág. 50 – Existem, pois inúmeros sóis, existem terras infinitas, as quais se movimentam à volta daqueles sóis, como percebemos estes sete girarem ao redor deste sol que nos é vizinho.
Pág. 50 – A razão é que nós podemos ver os sóis que são os maiores, antes grandíssimos corpos, mas não podemos perceber as terras, as quais, por serem corpos muito menores, são invisíveis; da mesma forma que não se opões à razão a existência de outras terras, mesmo que elas se movimentem ao redor deste sol, e não se manifestem a nós, seja por causa da maior distância, seja por causa do menor volume; que por não possuírem muita superfície de água, quer por não possuírem tal superfície voltada para nós e oposta ao sol, por meio da qual, como um límpido espelho que recebe os raios solares, se tornam visíveis.
Pág. 51 – Mas, de qualquer forma, sendo o universo infinito, é, afinal, necessário que existam mais sóis; pois é impossível que o calor e a luz de um elemento particular possam difundir-se na imensidão, como imaginou Epicuro, se é verdade aquele que os outros contam.
Pág. 52 – Ao redor daqueles podem movimentar-se terras muito maiores ou menores que a nossa terra.
Pág. 53 – Eu afirmo que o sol não brilha para o sol, a terra ão brilha para a terra, corpo algum brilha em relação a si mesmo, mas cada corpo luminoso brilha no espaço à sua volta. Contudo, apesar de a terra ser um corpo luminoso por causa dos raios do sol que incidem na superfície cristalina, sua luz não nos é sensível, nem aos que se encontram sobre esta superfície, mas é percebida por aqueles que se encontram do lado oposto ao dela.
Pág. 56 – Daí podemos concluir que inúmeras estrelas são como outras luas, outros tantos globos terrestres, outros tantos mundos semelhantes a este, em torno dos quais parece movimentar-se esta terra, da mesma forma que eles parecem movimentar-se e girar ao redor desta terra. Porque então, queremos afirmar que existe diferença entre estes corpos e aqueles se podemos constatar tamanha aptidão?
Pág. 62 – De maneira que não existe um único mundo, uma única terra, um único sol; mas os mundos são tantos quantas lâmpadas luminosas percebemos à nossa volta, as quais não estão mais num céu, num lugar e num receptáculo, do que este nosso mundo, onde moramos, está num receptáculo, num lugar num céu.
Pág. 62 - ....Porque é impossível que uma inteligência racional e um pouco atenta possa imaginar que estejam privados de semelhantes ou até melhores moradores ou inúmeros mundos, que a nós se manifestam iguais ou melhores que o nosso; os quais são sóis....
Pag. 63 – Desta diversidade e oposição dependem a organização, a simetria, a compleição, a paz, a concórdia, a composição, a vida.
* Sobre o Infinito, O Universo e os Mundos – Giordano Bruno/Galileu Galilei/Tommaso Campanella – Editora Abril Cultural
TÉCNICA: Óleo + objetos sobre madeira
DIMENSÕES: 55 X 76 cm
ANO: 2016
Walter Miranda - 2016
BOSCH + 500 – O JUÍZO FINAL
Esse é um tríptico em comemoração aos 500 anos da morte do famoso pintor holandês Hieronymous Bosch.
Ele representa uma releitura da pintura de Bosch denominada O juízo final, inclusive na montagem física do painel articulável que se abre como se fosse uma janela.
A comparação temática entre os dois trabalhos se baseia nas questões sociais do final da Idade Média, representadas por Bosch em seu tríptico, e várias situações conflitantes do século XXI, tais como conflitos bélicos, devastação ecológica, desrespeito à vida, pandemias etc.
Técnica: Óleo + objetos sobre tela sobre madeira.
Dimensões: 73 cmX58cm
Ano: 2016
Walter Miranda - 2016
Da Caverna de Platão à Dicotomia de Um Senão - IV
Essa é a quarta versão de trabalhos baseados na caverna de Platão, um trecho do texto A República escrita pelo filósofo grego Platão (c428-c348aC.). O texto descreve a situação de alguns homens presos em uma caverna de costas para a sua abertura e sem poder olhar para trás ou para os lados. Dessa forma, a única concepção que eles têm do mundo é representada pelos sons que ouvem e pelas sombras de pessoas que passam à frente da caverna e que são projetadas na parede ao fundo dela.
O quadro tem a forma de um diamante e a área central dele mostra o exato momento em que um dos homens consegue se libertar e apreende a realidade do mundo afora, que está representada nas diversas faces do diamante com imagens das sociedades antiga e contemporânea.
TÉCNICA: Óleo + objetos sobre madeira
DIMENSÕES: 99 X 60 cm
ANO: 2015
Walter Miranda - 2015
Os Quatro Elementos da Natureza e as Quatro Estações do Ano
Dois quadros que abordam elementos simbólicos da filosofia clássica grega antiga. Eles foram planejados usando a minha imagem e da minha esposa, Flávia, na posição do homem vitruviano de Leonardo da Vinci.
Concomitantemente à mensagem filosófica, trabalhei os elementos de forma lúdica explorando conceitos de composição, forma e cor. Assim, os elementos se tornam simbólicos, sendo que alguns (folhas, sementes, flores conchas etc.) representam o naturalismo e as peças de computador representam o domínio da tecnologia na sociedade atual.
Quadro 1 - Os quatro Elementos da natureza.
Quatro retângulos áureos circundam a imagem vitruviana e em seu interior encontram-se formas geométricas que foram geradas usando as espirais logarítmicas proporcionadas pela proporção áurea, uma relação matemática usada desde a Antiguidade.
O elemento terra foi correlacionado com a geração da vida por meio de alusões a sementes e o órgão sexual feminino. A forma dos elementos fogo, água e ar têm suas linhas alusivas à sinuosidade das labaredas, das ondas e das nuvens.
Ao lado dos retângulos áureos estão pequenos retângulos preenchidos com objetos que representam os quatro elementos.
Quadro 2 - As quatro estações do ano.
Nesse quadro, a primavera está relacionada às flores, o verão ao calor do sol, o outono às cores das folhas que caem nessa época e o inverno aos cristais de gelo. As formas inseridas nos retângulos áureos também foram obtidas por meio de espirais logarítmicas.
Técnica: Óleo + objetos sobre madeira
Dimensões: 81 x 81 cm
Ano: 2015 Walter Miranda - 2015
Os Quatro Elementos da Natureza - I
Assim como em outras séries, esse trabalho representa o relacionamento entre o Homem e a natureza por meio do entendimento filosófico, científico e tecnológico que ele tem dos quatro elementos da natureza (terra, fogo, água e ar).
Na área que representa a terra abordei a mãe natureza e a correlação humana entre esse elemento e o uso dele por meio da tecnologia.
A área referente ao fogo apresenta a evolução entre o domínio desse elemento e o domínio do átomo.
Na área relativa à água incluí algumas conchas sobre placas de circuito impresso representando parte de nosso alimento marítimo fornecido também pela tecnologia. A lua foi colocada dentro de uma gota d’água para relacioná-la com a forte influência que ela exerce sobre os oceanos.
Na área representativa do ar coloquei bailarinos valorizando os corpos celestes, sol e lua e adorando a mãe Gaia, o planeta Terra.
Acima das quatro áreas está a cúpula terrestre.
Todos os elementos do quadro encontram-se emoldurados por placas de circuito impresso e pentes de memória RAM, para reforçar o conceito de desenvolvimento tecnológico desestruturado que causou o atual impasse ecológico, pois se valoriza mais as ciências exatas, que nos proporcionam um conforto material, em detrimento das ciências humanas, que buscam um desenvolvimento sustentável em harmonia com o planeta.
TÉCNICA: ÓLEO + OBJETOS SOBRE MADEIRA
DIMENSÕES: 20 X 80 CM
ANO: 2014
Walter Miranda - 2014
Exaltação a Gaia XVIII - Primeiros Passos
Quadro que faz parte de uma série recorrente ao longo dos anos denominada “Exaltação a Gaia”.
Gaia é a deusa grega que representa o planeta Terra e a mãe Natureza.
Geralmente, os quadros dessa série exaltam a beleza da vida sem maiores implicações filosóficas, por isso, em todos os trabalhos dela série o planeta Terra é o centro das atenções.
Nesse caso específico abordo a jornada do homem desde os primórdios da civilização até a conquista espacial representada pelo ônibus espacial e a jornada das sondas espaciais Pioneer 10 e 11, lançadas ao espaço em 1972 e 1973 e primeiros objetos feitos pelo homem a deixar o sistema solar.
Algumas das imagens são releituras das informações contidas em uma placa metálica anexada às duas sondas que contém informações sobre a localização do sistema solar, do ponto de partida delas e dos seres que as criaram e enviaram ao espaço. As demais imagens acredito serem autoexplicativas.
TÉCNICA: Óleo + objetos sobre madeira (MDF)
DIMENSÕES: 70 X 43 CM
ANO: 2010
Walter Miranda - 2010
Nada de Novo no Novo Milênio - II
O uso da violência como instrumento de dominação e desculpa para atingir objetivos escusos ou duvidosos; o uso de discursos políticos, ideológicos e filosóficos com a finalidade de confundir o raciocínio das pessoas e se manter no poder; a manipulação das informações a fim de esconder a verdade etc. Enfim, qualquer tipo de atitude que sirva para justificar a exploração do ser humano pelo próprio ser humano sempre me incomodou e a forma que eu uso para expressar a minha indignação contra isso é a arte.
Recentemente, a destruição das duas torres do WTC em Nova Iorque causou a morte de muitos inocentes, chocando o mundo ocidental que assistiu ao vivo cenas dantescas.
Em meu coração instalou-se a dicotomia de sentir-me chocado com a cruel violência visualmente exposta naquele ato e ao mesmo tempo revoltado com a violência dissimulada de alguns governantes, de uma superpotência e de países aliados, que desrespeitam os princípios mais básicos de convívio civilizado entre povos de diferentes culturas.
Infelizmente, esses hipócritas têm usado o sangue dos sacrificados como desculpa para continuar se mantendo no poder e continuar explorando diversos povos que vivem em locais estratégicos, econômica e militarmente, cometendo mais atrocidades e injustiças contra pessoas tão inocentes quanto as que morreram em setembro do ano passado.
O tríptico Nada de novo no Novo Milênio - II é o meu protesto contra estas atitudes que só aumentam o nível de violência e injustiça no mundo gerando mais insatisfação das populações exploradas e servindo de motivo para mais loucuras e atitudes desesperadas de minorias radicais. O resultado desse tipo de manipulação é sempre a morte de inocentes dos dois lados.
Essas atitudes e seus resultados não são novos, mas os líderes de diversos países (em ambos os lados dos conflitos) continuam usando inescrupulosamente o sangue dos inocentes para manter suas posições políticas, manter seus confortos materiais, aumentar seus lucros financeiros e justificar seus atos de violência contra povos e culturas que não entendem.
Nem mesmo a promessa de um mundo novo neste novo milênio tem sido capaz sensibilizar as lideranças do mundo em relação ao respeito humano e às diferenças culturais. Por isso mesmo, continuamos à mercê do antigo risco de guerras tradicionais, bacteriológicas ou até mesmo de uma hecatombe nuclear.
Uma parte do tríptico apresenta a bandeira americana estilizada de onde partem mísseis que ameaçam a cultura islâmica, representada pela lua crescente com a estrela, e outra parte apresenta dois aviões em queda livre que ameaçam a cultura ocidental, representada pela tocha da estátua da liberdade. Estas duas imagens são baseadas na argumentação das duas culturas (ocidental e islâmica). São duas visões antagônicas do mesmo problema, onde as duas partes se autodenominam libertadoras e chamam os inimigos de terroristas. É interessante notar que os discursos dos líderes de ambas as partes são tão iguais que, se pensarmos bem, eles se desmascaram mutuamente. Eles só continuam fingindo o papel de bonzinhos porque se sentem protegidos pelo sistema que defendem e porque muito de nós continuamos fingindo que não vemos esse teatro macabro onde os inocentes continuam pagando pelos pecadores.
Esse trabalho foi pintado sobre papelão de fabricação própria com as imagens sendo pintadas à mão ou editadas por meio de computação gráfica e as placas de computador foram serradas e esmerilhadas. A composição do tríptico é construtivista e segue os princípios matemáticos da relação áurea, uma relação matemática observada em várias criações da natureza e já encontrada nos estudos matemáticos dos povos da Antiguidade. Através dela, determinei os retângulos áureos e localizei vários pontos e áreas focais onde foram afixados os elementos simbólicos que representam diversas situações diretamente relacionadas com o tema da obra e que obrigam o espectador a examinar as relações metonímicas dos quadros, provocando-lhe questionamentos. Nesse sentido, as peças de computador representam o domínio da tecnologia na sociedade atual e que, muitas vezes, tem servido como instrumento de dominação pelos povos mais ricos.
Meu objetivo com minhas críticas sociais por meio da arte é provocar o espectador, usando uma linguagem artística e subjetiva. Para mim, o mais importante é a reflexão que o espectador leva consigo depois de observar meus trabalhos. Não sonho em transformar o mundo com meus questionamentos e nem pretendo mostrar que a arte pode eliminar a violência no mundo, mas gosto de provocar as pessoas para que elas tirem suas próprias conclusões sobre o tema abordado.
Quem tem olhos, que veja!
Técnica: óleo + imagens digitalizadas + objetos sobre papelão de fabricação própria
Dimensões: 153 x 96 cm
Ano: 2002-2003
Walter Miranda – 2002/2003
Doutrina Bush - O Espantalho da Morte
Em 2003, os EUA invadiram o Iraque sob a acusação de que esse país produzia armas de destruição em massa e que apoiava a al-Qaeda, grupo terrorista acusado pelo ataque às duas torres em Nova Iorque e ao Pentágono em Washington. À época, o diretor da a CIA, George Tenet, já havia informado ao presidente Bush que o Iraque não produzia as armas mencionadas e não tinha ligação com a al-Qaeda, cujo chefe Bin Laden, estava no Afeganistão. Mesmo assim, Bush auxiliado pelo Reino Unido, Austrália e outras nações, resolveu invadir o Iraque. Após a invasão nenhuma das acusações foram comprovadas e a invasão criou uma desestabilização do Iraque que culminou no nascimento do grupo terrorista Estado Islâmico - ISIS.
O trabalho denominado Doutrina Bush – O Espantalho da Morte representa a minha opinião sobre as ações militares norte-americanas em várias partes do mundo em nome de uma política que eu considero equivocada e maldosa.
A parte vertical do quadro representa a imagem do “Tio Sam” (símbolo dos EUA). Na cabeça existem várias imagens apresentando Bush convocando para a invasão e brincando de dominar o mundo, bem como armamentos militares, manifestações mundiais contra a invasão etc.
O tronco e os braços são formados por alusões à bandeira norte-americana. As faixas brancas e vermelhas funcionam como rastro deixados por seis aviões furtivos (stealth) B-2 Spirit e dois caças F-21 que ameaçam simultaneamente os continentes mundiais que estão dentro de dois HDs com a Iinscrição “Nós” em vários idiomas que se contrapõem à inscrição “US”, que também significa “Nós” em inglês e ao mesmo tempo United States.
As cinquenta estrelas da bandeira dos EUA é representada por esporas, numa alusão à origem texana de Bush. Os pentelhos são representados por uma águia e o pênis por um míssil Tomahawk. Os pés são representados por dois aviões furtivos Nighthawk F-117.
No chão, um mapa-múndi cercado por balas tem várias bandeiras americanas fincadas nos continentes representando a presença militar do país no mundo e as áreas dos EUA e Reino Unido são preenchidas com placas de circuito eletrônico.
TÉCNICA: ÓLEO + OBJETOS SOBRE MADEIRA
DIMENSÕES 205 X 185 CM - (Avanço horizontal = 60 cm)
ANO: 2003
* Objetos utilizados: Placas de computadores serradas e esmerilhadas, esporas, HDs desmontados, broches, acrílico, objetos decorativos, etc.
Walter Miranda - 2003
Doutrina Bush - O Espantalho da Morte por Flávia Miranda
O artista plástico Walter Miranda apresenta algumas obras de arte que provocam profundas reflexões sobre o momento político mundial atual. Em alguns painéis do Átrio estão obras que criticam a atual política norte-americana (denominada Doutrina Bush) e os atos terroristas. Ao mesmo tempo, o artista expõe obras homenageando a cidade de Nova York, vítima dos atentados de 11 de setembro de 2001. As obras unem a tradicional técnica da pintura a óleo (embora em estilo contemporâneo) a novas mídias tecnológicas (pois parte dos trabalhos foi realizada através de computação gráfica). Uma obra se destaca do conjunto: DOUTRINA BUSH - ESPANTALHO DA MORTE. Ela consiste em um espantalho de estatura e envergadura de um homem adulto com o mapa mundi a seus pés e é pintada com esmalte sintético e tinta a óleo, com inserção de placa de computador serrada, HDs desmontados, broches, balas de revolver, esporas, imagens trabalhadas com computação gráfica, etc. É tanto um quadro, como uma instalação, pois da parede ela se estende para o chão, induzindo o espectador a olhá-la de vários pontos de vista e assim interagir com o objeto de arte. As diferentes imagens e partes que compõem a obra se relacionam entre si mas são ao mesmo tempo independentes. Isso provoca um olhar contemplativo dos detalhes e um olhar dinâmico pelas correlações de raciocínio das partes e do todo. Com certeza é uma obra impactante que conduz a reflexão inteligente do mapa político mundial atual. É uma exposição marcante de forte impacto visual e conceitualmente objetiva mas com sutilezas nas entrelinhas.
Flavia Venturoli - Abril 2004
O Livro de Gaia
O LIVRO DE GAIA
Obra composta de três placas de computador, cujos componentes eletrônicos foram rearranjados a fim de facilitar a inclusão de elementos figurativos na composição do trabalho. O conjunto das placas forma um livro com três páginas. Cada página representando uma etapa do desenvolvimento humano na Terra (Gaia).
A primeira página (capa do livro) aborda o desenvolvimento do Homem desde a pré-história até a Antigüidade. Nesse período, o Homem aprendeu a observar o céu e relacionar determinados fenômenos celestes com o crescimento das plantas e, consequentemente, aprendeu a cultivá-las, passo fundamental para o seu desenvolvimento cultural e tecnológico. A inclusão de imagens representativas desse desenvolvimento começa pelo canto inferior esquerdo da placa onde se encontra a silhueta da mão de um homem pré-histórico, autor dos desenhos e pinturas rupestres encontrados em uma caverna. Junto a essa mão estão as imagens de duas placas de barro com inscrições muito antigas, representando a invenção da escrita. No centro da parte superior da placa encontra-se um compartimento dividido em duas partes. Na parte superior do compartimento estão algumas fases de um eclipse solar e, logo abaixo, a Terra e uma espiga de trigo, o alimento fornecido pela mãe Terra (Gaia). No compartimento inferior estão elementos que representam a natureza, conchas, flores, sementes, etc. No compartimento superior direito, encontra-se um esqueleto representando um fóssil pré-histórico, o mesmo ocorrendo com um osso ao lado desse compartimento. Abaixo uma ampulheta representa o transcorrer do tempo. Uma outra imagem apresenta as pegadas humanas mais antigas encontradas até hoje. Uma placa com inscrições cuneiformes está acima do esqueleto de “Lucy”, supostamente o ancestral mais antigo do ser humano. O Cruzeiro do Sul está representado através de estrelas metálicas junto a uma pedra lascada.
A segunda página aborda o período entre a Antigüidade e a Revolução Industrial. Vários elementos, tais como, caracóis e espirais representam o desenvolvimento matemático do homem obtido através da observação da natureza. O eclipse solar envolto em nuvens e um corvo em primeiro plano representam a superstição vigente no período e o olho com a Terra no centro representa o misticismo religioso. O desmembramento da figura humana desenhada por Leonardo da Vinci representa o humanismo no Renascimento; e o mapa mundi representa as grandes navegações e o sentido de domínio da natureza que o Homem acredita ter ao criar divisões territoriais. As diversas peças mecânicas representam o desenvolvimento proporcionado pela Revolução Industrial e o ilusório domínio Humano sobre a natureza.
A terceira página aborda o período entre a Revolução Industrial e o momento atual. Várias imagens ou elementos colados na placa representam situações ou circunstâncias próprias da nossa era. As imagens da Terra sem água e com o buraco na camada de ozônio representam a fragilidade do ser humano frente à escassez dos recursos naturais devido a uma exploração inconsistente com a qualidade de vida que todos almejamos. Nesse sentido, a Terra dentro do relógio reforça o conceito de pouco tempo para evitar uma situação apocalíptica. O cogumelo atômico e o relógio destruído pela bomba em Hiroshima representam os perigos que o mau uso da tecnologia pode causar. A imagem de um soldado e uma bala de revolver representam a violência atual. Os urubus sobre um monte de lixo, uma floresta queimada e a imagem de vírus atacando uma célula representam a perda de qualidade de vida atualmente. As imagens de espermatozóides tentando penetrar um óvulo e o reflexo de um eclipse solar sobre uma mão demonstram o entendimento que o conhecimento humano trouxe sobre os fenômenos da natureza. Na parte inferior direita da placa, a imagem de uma mão sobre uma placa de computador (minha mão) faz uma ligação com a mão do homem pré-histórico, na primeira página, como se fosse uma assinatura da humanidade, mas também como se fizesse um sinal de proibido para as inconseqüências praticadas pela humanidade atualmente.
Walter Miranda – junho/2001
Admirável Novo Milênio
No começo, era a ditadura! Aprendi a expressar minha revolta através da participação política e a desafogar minhas tristezas através da manifestação artística. Meus trabalhos abordavam declaradamente os (d)efeitos da ditadura. Foram anos que marcaram, até hoje, a minha atividade profissional. Muitos críticos e admiradores do meu trabalho ainda esperam ver em meus quadros as mesmas críticas de outrora.
Os tempos mudaram. A democracia chegou para nós, brasileiros, ainda que tardia e incompleta, e o nosso futuro está em nossas mãos. Gostemos ou não dos governantes que elegemos, eles são colocados lá pela maioria e isso tem que ser respeitado. Afinal, lutamos por isso! Um dia aprenderemos com nossos erros e escolheremos melhor nossos representantes. Penso que a semente foi plantada em solo fértil e, aos poucos, a árvore está crescendo.
Dessa forma, meus anseios e preocupações transcenderam para uma nova dimensão relacionada com a condição humana no planeta e, mesmo após as séries "Admirável Mundo Novo", "Projeto Seattle" e "Admirável Nova Idade Média" ainda sinto que o assunto filosófico não foi esgotado. Na verdade continuo sentindo-me incomodado com os rumos que a humanidade tem tomado ao fazer uso impensado e inconseqüente de uma tecnologia poderosa.
Entristece-me o fato de que o planeta produz diariamente o suficiente para que todos os seres humanos tenham o "pão nosso de cada dia" e, ainda assim, nem todos o recebem. Percebo que continuamos a brincar de senhores da natureza. Não agimos como parte da natureza, mas como donos dela. Sinto que a vingança se aproxima!
Na série "Admirável Novo Milênio" apresento o ser humano, em situações de desinteresse, arrogância e prepotência frente às questões que se referem à sobrevivência da espécie no planeta. Nesse sentido, a série aborda uma idolatria tecnológica que tem deixado o ser humano deslumbrado, mas impotente, frente aos resultados desastrosos proporcionados por seus "Caprichos", como diria Goya!
Projeto Seattle por Flávia Miranda
Em 20 anos de carreira artística, Walter Miranda, sempre se ateve a questões filosóficas e conceituais, tanto sociais quanto globais. Nesta nova série denominada, PROJETO SEATTLE: EXALTAÇÃO A GAIA, o artista usa como tema o planeta Terra, através da livre representação, pictórica da carta resposta do chefe indígena Seattle à proposta do presidente norte americano, Franklin Pearce, para a compra de terras indígenas em troca de uma reserva em 1.855. O texto é uma obra de grande beleza, poesia e filosofia, que profetiza a situação de degradação ecológica da Terra, sendo uma literatura ainda pertinente nos dias de hoje.
Gaia em grego, Terra em latim, era uma das divindades primordiais da teogonia grega, após o caos. Dela principia tudo, desde suas forças naturais que mitologicamente são representadas por seus filhos, até criaturas que sobre ela vivem e dela dependem, animais e plantas. Nesse sentido, o tema, Exaltação a Gaia, toma sentido quando percebemos a presença da imagem do planeta em todas as obras expostas, em circunstâncias conceitualmente distintas.
Walter produz composições construtivistas através do uso da Relação Áurea, que é uma relação matemática observada em várias criações da natureza e já encontrada nos estudos matemáticos dos povos da Antigüidade. Ao mesmo tempo elimina a rigidez geométrica das composições criando uma relação orgânica dos espaços através da espiral logarítmica. As conjunções das linhas compositivas propiciam formas figurativas que são integradas ao tema pelo artista de maneira estilizada ou realista.
Utilizando a tradicional técnica da pintura a óleo, obtém texturas e efeitos visuais peculiares através de sobreposições de tinta em camadas espirradas, enrugadas e/ou pinceladas abstratas que são aplicadas tanto ao fundo quanto às figuras em alto relevo, que foram desenhadas e recortadas em papelão e coladas nos quadros durante o processo da composição.
Através da incorporação aos quadros de placas de circuito impresso de computador (algumas vezes serradas e esmerilhadas para obter formas geométricas e figurativas tais como locomotivas, arvoredos, figuras humanas, etc.), chips, baterias e vários elementos do nosso cotidiano tecnológico, além de elementos da natureza, como sementes, folhas, terra, cinzas, etc., Walter, ilustra de maneira simbólica a dicotomia atual de natureza versus uso inconseqüente da tecnologia, provocando reflexões sobre a questão do meio ambiente, do papel do homem no planeta e da responsabilidade sobre esta herança ecológica, como observamos na obra onde ele incorpora um vidro com água pura (retirada da nascente do Tietê) e outro com água poluída (retirada do mesmo Tietê, porém dentro da cidade de São Paulo).
Além disso, repetindo algumas imagens como, por exemplo, a Terra, as bailarinas, e crianças, entre outros elementos figurativos, o artista cria um repertório que dá ênfase a um universo de significados que não visa transmitir mensagens decodificadas ao espectador, já que a utilização desses elementos como detalhes, obriga o espectador a examinar as relações metonímicas de cada elemento provocando-lhe questionamentos, para que ele tire suas próprias conclusões sobre o tema abordado. O resultado é a cumplicidade ou a negação, pois ambas formam os dois lados de uma moeda, ou seja, um tipo de envolvimento fechando, dessa forma, o círculo.
O artista, portanto, procura unir a razão ao sentido, base de seu processo criativo. O resultado é um trabalho totalmente novo que, embora apoiado nas técnicas tradicionais, visa sua superação e transformação e, por isso, tem raízes profundas na história, cultura e linguagem artística (como observou Ferreira Gullar a respeito da poesia), onde esse estilo é identificável pela concepção compositiva, sendo a técnica (variável) seu mero instrumento. Como escreveu Kandinsky: "O artista deve ter algo a dizer porque seu dever não é dominar a forma e sim, adequá-la a um conteúdo"
Flávia Venturoli – nov/98
Observação: a carta encontra-se disponível na página: https://www.fwmartes.com.br/imprensa/114/carta-do-chefe-seattle
Veja Série Exaltação a Gaia
Admirável Mundo Novo
"O artista deve ter algo a dizer porque o seu dever não é dominar a forma, mas sim adequá-la a um conteúdo." Wassily Kandinsky Nesta série de trabalhos que venho desenvolvendo desde 1986 e tem como "leit motif" a obra homônima do escritor inglês Aldoux Huxley, procuro abordar o lado sutil do controle do indivíduo, em contrapartida ao lado evidente, que apresentei na série "1984". Nela tento mostrar que, em decorrência da modernidade tecnológica atual, nos tornamos apáticos, alienados e robotizados, incapazes de questionar com profundidade os conceitos fundamentais advindos desse desenvolvimento desestruturado. Incapacidade essa nascida do indireto e sutil controle de nossos anseios e desejos através dos confortos materiais (verdadeiros somas) contemporâneos.
Em outras palavras, a intenção desta série é representar as incoerências do desenvolvimento humano através de três pontos básicos, a saber:
Com isso, tento levantar questões sobre a suposta impunidade do comportamento humano, tais como: Seremos, um dia, interrogados sobre as inconseqüências praticadas através de uma tecnologia impensada? Serão nossos inquiridores nossos próprios descendentes? Será o supremo tribunal será um pla-neta desolado e devastado? Os quadros são planejados com base na relação áurea, uma relação matemática observada em várias criações da natureza e já encontrada nos estudos matemáticos dos povos da Antigüidade. Com ela e alguns cálculos matemáticos, procuro resolver de forma construtivista o desafio da composição. Após vários estudos, determino os retângulos áureos e localizo vários pontos e áreas focais onde serão afixados os elementos simbólicos. As espirais logarítmicas e as linhas de força surgem como conseqüência natural da utilização da relação áurea e dos retângulos. Em alguns quadros criei uma espécie de "circulo fechado" onde o quadro é um detalhe dele mesmo e este detalhe é o próprio quadro.
Segue-se, então, o momento de trabalhar os elementos simbólicos que serão afixados nos pontos ou áreas focais de cada quadro. Entre os elementos simbólicos encontram-se fórmulas físico-matemáticas e elementos artísticos, pintados separada-mente em papelão, que representam o real progresso humano; sementes e folhas de árvores (preparadas para não se deteriorarem) que representam o naturalismo; peças de computador que representam o domínio da tecnologia na sociedade atual; elementos de sucata; imagens produzidas através de computação gráfica, etc.
Alguns elementos são repetidos em várias obras, podendo ser classificados como um tipo de repertório que, ao ser utilizado, enfatiza um universo pessoal de significados, já que a utilização desses elementos como detalhes, ou como primeiro plano, obriga o espectador a examinar as relações metonímicas dos quadros, provocando-lhe questionamentos. O objetivo é que ele tire suas próprias conclusões sobre o tema abordado através de uma linguagem subjetiva. O resultado é a cumplicidade ou a negação, não importa, pois ambas formam um tipo de envolvimento que remetem à essência do que tento transmitir.
Abril/1992 Walter Miranda
Leia sobre exposições desta série:
Diário de Bauru - Walter Miranda e Evaldo Barros expõem na Casa da Cultura
Diário de Bauru - Telas e Poemas de Walter Miranda e Evaldo Barros, Amanhã na Casa da Cultura
Gazeta do Ipiranga - A Arte de Walter Miranda: Retratar a Realidade
Da Caverna de Platão à Dicotomia de um Senão
Três quadros que representam a evolução humana no planeta. Eles foram criados baseados no trecho do texto A República escrita pelo filósofo grego Platão (c428-c348aC). Nele, Platão descreve a situação de alguns homens presos em uma caverna de costas para a sua abertura e sem poder olhar para trás ou para os lados. Dessa forma, a única concepção que eles têm do mundo é representada pelos sons que ouvem e pelas sombras de pessoas que passam à frente da caverna e as projetam na parede ao fundo dela.
Quadro 1 – Representação do percurso humano desde a Pré-História até a Antiguidade. Na parte superior são representados momentos importantes tais como a observação do céu e das estrelas, o domínio do fogo, a criação de ideogramas, do alfabeto, a descoberta da matemática etc. Na parte inferior, dentro de uma parábola (curva matemática) está um dos homens que conseguiu se libertar e compreender que o mundo é feito de diversas realidades.
Quadro 2 - Representação do mesmo percurso desde o Renascimento até o Século XX. Na parte superior estão várias fórmulas matemáticas simples até variações da famosa fórmula de Einstein, além de imagens do planeta e uma placa de circuíto impresso que representa o domínio tecnológico. Na parte inferior estão vários objetos gerados pela tecnologia e dentro da parábola está uma bailarina que representa o equilíbrio inicial obtido com o domínio das ciências físicas.
Quadro 3 - Representação do momento atual em que a humanidade se encontra. Na parte superior está uma imagem representativa da fissão do átomo e outra variação da formula da relação entre a energia e a matéria. Ao lado está um cogumelo atômico associado ao domínio tecnológico da energia. Na parte inferior o homem encontra-se cabisbaixo e sendo ameaçado por uma bala dentro da parábola matemática, formada por várias balas.
Título: Caverna de Platão à Dicotomia de um Senão I, II e III.
Técnica: Laca acrílica + objetos sobre chapa de ferro perfurada
Dimensões: 61,8 X 100cm
Ano: 1991/2001
Janela Nossa de Cada Dia
A Série Janela Nossa de Cada Dia apresenta três pares de questões filosóficas: Tecnologia versus Natureza; a Condição Humana versus a Compreensão da Infinitude e Ideologia versus Violência.
São três trabalhos pintados sobre madeira e que são articuláveis porque as folhas das janelas podem ser abertas ou fechadas.
Janela 1 – Contraposição do uso da tecnologia, representada pelo ônibus espacial, em detrimento da proteção à natureza, representada por uma floresta sendo penetrada por uma estrada.
Janela 2 – Contraposição da condição básica do ser humano, representada pela fome, e a infinitude do universo do qual somos apenas uma ínfima parte dos desígnios de Gaia, a mãe Terra.
Janela 3 – Contraposição da busca humana pela liberdade, representada pela mão da estátua da liberdade, e o uso da violência para atingir nossos objetivos, representado pelo cogumelo atômico
Técnica: Óleo sobre madeira
Dimensões: 100 X 60cm
Ano: 1987-2020
Santo André realiza seu V Salão Jovem
Diário do Grande ABC 26 de Setembro de 1982.
Arte/Crítica Enock Sacramento
Santo André realiza seu V Salão Jovem
A presença de três artistas andreenses entre os cinco premiados do V Salão Jovem de Arte Contemporânea de Santo André, aberto a artistas de todo o país, mostra que as coisas estão mudando no panorama artístico do Grande ABC. Novos nomes estão surgindo em nosso ambiente artístico, alguns revelados pelo próprio Salão Jovem, criado em 1978 por Miller de Paiva e Silva exatamente com essa finalidade: dar oportunidade aqueles que não têm ainda acesso ás galerias comerciais de Arte de São Paulo.
No primeiro salão jovem dos três premiados, dois eram da região: Ronaldo Bertaco, de Santo André, e Antonio Carlos de Almeida Mattos, de São Caetano.
No II Salão, Luiz Antonio Boralli, de Mauá foi um dos três artistas agraciados com o prêmio Cidade de Santo André, de natureza aquisitiva. A partir do III Salão os prêmios passaram a ser em número de cinco. Mattos voltou a ser contemplado com um deles. No IV dois prêmios ficaram na região atribuídos que foram a Renato Brancatelli, de São
Caetano e Fátima Palerme, Nil e Paula Caetano, de Santo André que apresentaram uma magnífica criação em grupo: Transições Tubulares, hoje no acervo da prefeitura.
Agora na V versão do Salão Jovem, temos mais três artistas de Santo André premiados: Fausto Ribeiro, Paula Caetano e Wilson de Oliveira Souza. Paula Caetano e Fátima Palerme, que integram o Grupo forma um Todo e Walter Miranda ( este de São Paulo, mas com uma grande atuação na região ), receberam ainda menções especiais que, por lapso, não constaram do catálogo.
A comissão julgadora do V Salão Jovem, constituída por Ismael Assumpção, Antonio Zago e Jair Glass, selecionou apenas 95 trabalhos para figurar na mostra que, por isso mesmo apresenta bom nível no conjunto. As obras premiadas mostram claramente a tendência do júri no sentido de valorizar o gráfico. Fausto Ribeiro apresenta-nos trabalhos realizados com pastel e lápis de cor. Paula Caetano está presente com três Intermezzos, com dois a lápis de cor e uma técnica mista, com referências á temática musical. Wilson de Oliveira Souza tem cinco obras, três realizadas em nanquim e ecoline e dois objetos.
Em todos a preocupação de explorar as possibilidades plásticas do traço e de realizar uma obra sóbria e contemporânea.
Todavia, os trabalhos de maior impacto do Salão são os que receberam menções em lugar de prêmios: A Arte Objeto de Walter Miranda, e o trabalho experimental do Grupo Forma Um Todo, integrado por Fátima Palerme e Paula Caetano. Miranda inscreveu três trabalhos de grande força criativa e absolutamente atual: Xeque Argentino, Xeque Inglês, e Xeque-
Mate, constituídos de três tabuleiros de xadrez com o mapa das ilhas Falklands/Malvinas orientais e ocidentais. Essas ilhas vão se aproximando na seqüência para finalmente, ocuparem a área interna do xadrez no xeque-mate, em que as pedras, antes representadas por bandeiras argentinas e inglesas, pintadas em uma metade esférica, são substituídas por vidros de conteúdo vermelho identificados como ’’Sangue Argentino “ e “Sangue Inglês”, uma aguda crítica aos conflitos bélicos.
A obra experimental de Paula Caetano e Fátima Palerme tem o mesmo nível de criatividade, embora com enfoque completamente diferente. Esta obra de nítido sentido ritual vem sendo modificada por pessoas convidadas e interessadas. É, portanto, uma obra aberta, que prevê a participação do espectador. Sexta-feira ela foi por nós modificada, juntamente com o arquiteto Wilson Stanziani, de Santo André.
O Salão Jovem de Arte Contemporânea de Santo André tem o sabor das coisas espontâneas e a força das novas sensibilidades. Já se constitui num acontecimento importante do movimento artístico da Grande São Paulo. Não deixe de ver.
Transposições sociais
Tudo que o ser humano faz tem função social. Porém, dentro da Arte, creio que no exato momento da criação, a obra deve ter uma preocupação social. A função será a conseqüência. Sendo assim, na série de óleos que desenvolvi e apresentei em 1981, resolvi abordar as diferenças socioeconômicas representativas da sociedade brasileira.
A ideia inicial foi apresentar um cenário que apresentasse “os dois lados da mesma moeda”. Entretanto, não teria sentido usar situações convencionais, já que a idéia não atingiria o impacto pretendido. Dessa forma, após alguns estudos, cheguei às Transposições Sociais.
Usei a criança como elemento principal devido à sua não deturpação de conceitos, o que expressa para mim, um resto de esperança em nossa sociedade. Em todos os trabalhos, tanto as crianças ricas como as pobres apresentam um aspecto saudável para reforçar exatamente a impressão de pureza, apesar da opressão social e conceitual imposta por nós, adultos.
Por isso, os quadros se apresentam em pares com as crianças em posições idênticas, porém em condições sociais opostas, a fim de mostrar a igualdade humana em termos naturais e a injustiça social em termos humanos.
Walter Miranda Abril/1981
Walter Miranda no Centro de Artes Shopping News
30 de agosto de 1981 Shopping News/City News - Artes Plásticas
Walter Miranda Walter Miranda no Centro de Artes Shopping News, abre as inaugurações de uma emana agitada. Amanhã, às 20h30 ele expõe 24 trabalhos em óleo sobre tela e papelão, todos usando crianças como principal elemento. “Para mim, a criança representa um resto de esperança em nossa sociedade”, explica Walter. Transposições Sociais é o título da primeira exposição individual do artista.